Muitos artistas se inspiram nas conexões que fizeram com a arte ainda cedo, na infância, para trilhar um caminho profissional na área. Para estes, o desejo de criar vem da presença: das músicas que enchiam os cômodos da casa, dos filmes vistos em família, do estímulo à leitura e ao pensamento crítico aprendidos na escola. A história foi diferente, no entanto, para a artista visual Alexia Ferreira, 24.
A cearense, nascida na Capital e criada em uma comunidade do bairro Barroso II, encontrou vontade de criar a partir da ausência. “A arte, para mim, nunca foi de fato uma possibilidade, nunca chegou até mim”, afirma. Em Fortaleza, a artista enfrentou uma infância de dificuldades, enquanto a família lutava contra todas as “coisas a que as pessoas negras e faveladas estão expostas”.
Na adolescência, Alexia viveu em Maranguape, onde morou até 2022. Foi lá que, de forma despretensiosa, começou a transformar lembranças e sentimentos em arte, pensando no que queria ter vivido e experimentado quando pequena, mas não conseguiu por falta de acesso. O incômodo que sentia em não se ver representada nas colagens de artistas que acompanhava também se tornou impulso.
Assim surgiu o projeto Colagem Negra, cuja matéria-prima é a memória, mas também o sonho. “Começou de forma muito despretensiosa: eu só queria me enxergar nesse lugar também, então sempre pegava figuras de pessoas negras para fazer essas colagens”, explica.
A colagem é, muitas vezes, o primeiro passo que uma criança tem para chegar à arte, porque muitas professoras propõem esse exercício. Ela é uma arte muito mais democrática; a colagem aproxima porque ela parte muito da subjetividade.
O primeiro passo foi o de se permitir fazer arte; o segundo, mais complexo, foi o de se entender artista – processo que contou com a ajuda de amigos, que estimularam que Alexia compartilhasse o que produzia nas redes sociais.
Pouco a pouco, o que era uma forma de expressão foi se transformando em trabalho, à medida que os seguidores começaram a se interessar pelas peças e encomendar colagens originais. “A pandemia foi marcante no meu desenvolvimento, porque eu ficava muito em casa, então comecei a trabalhar e produzir cada vez mais”, lembra.
A felicidade como protesto
Cheios de cores e simbologias, os recortes imagéticos feitos por Alexia resgatam e constroem histórias. Inicialmente, todas as colagens eram feitas digitalmente e retratavam, principalmente, a resistência das pessoas negras no Brasil, com referências à importância da luta antirracista.
“No começo, eu falava sobre coisas que eu sentia no momento, o que surgia na cabeça eu ia fazendo”, explica. Não demorou muito, porém, para Alexia começar a se aventurar nas colagens manuais – e para decidir que sua arte tomaria outro caminho e mostraria outras possibilidades.
“Antes, eu falava muito sobre racismo e colonialismo, mas isso foi mudando porque eu não estava confortável com o que estava criando. Depois, comecei a criar obras sobre pessoas negras existindo sem dor, pessoas negras brincando, se divertindo, em momentos de felicidade. Comecei a pensar que, fazendo arte, poderia construir outras formas de pensar esses corpos”, completa.
Nas colagens feitas nos últimos dois anos, as cores, formas e retratos ganharam novo brilho, e se tornaram parte importante do processo de cura, autoconhecimento e amadurecimento da artista.
As pessoas têm muito essa ideia de que a gente só fala sobre isso [racismo]. Sempre brinco que não sou uma pessoa que fala sobre dor. Falo muito sobre o ócio, que é um fator muito importante na nossa vida de forma geral, inclusive na arte. Adoro RuPaul's Drag Race, posso falar sobre isso também. A gente não cria só na dor, a gente também cria quando está com nossos amigos, se divertindo.
O sonho em processo
Parte dessa trajetória de transformação pessoal e profissional se transformou em pesquisa: no ano passado, Alexia participou do Laboratório de Artes Visuais da Escola Porto Iracema das Artes, onde desenvolveu o trabalho “Fazendo arte como não podia fazer quando criança”, com tutoria da multiartista Skarlati Kemblin, que resultou em uma série de ações que retomam a memória afetiva da infância.
O estudo traz de volta, além de colagens originais, desde as tranças que Alexia fazia no cabelo, passando pelos bombons que comia e as brincadeiras que gostava – nada se perde, tudo se ressignifica, pode e deve ser compartilhado.
Essa diversidade de suportes e possibilidades tem levado a artista a experimentações que vão além da colagem, como a fotografia – uma antiga paixão – e instalações. Atualmente, a artista tem obras expostas em três exposições: no Circuito SP-Arte, na OMA Galeria, em São Paulo; na exposição "Anas, Simoas e Dragões: lutas negras pela liberdade", no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE), e no 75º Salão de Abril, no Centro Cultural Casa do Barão de Camocim, ambos em Fortaleza.
"Estou em um momento de realização de um sonho muito grande", comenta. "Porque o maior sonho, tanto para mim quanto para a maioria dos artistas, é conseguir me sustentar com o meu trabalho e que ser escutada".
No fim do ano, Alexia se prepara para mais uma etapa da realização desse sonho. Junto a outros artistas visuais cearenses, irá expor cinco obras no Museu do Povo Galego, em Santiago de Compostela, na Espanha.
Mesmo animada, a artista lembra que cada conquista vai muito além do reconhecimento entre os pares: é passo de alento e cuidado com a criança que ainda vive ali e a jovem adulta ainda em processo de descobertas.
"Cada convite, cada exposição, é uma forma de eu continuar fazendo meu trabalho, de eu me encontrar. Se eu não tivesse espaço, não conseguiria produzir. E se eu não conseguisse produzir, não conseguiria me entender".
Conheça a artista
Instagram: @colagemnegra
Mais informações sobre as exposições em @macdragao, @viladasartesfortaleza e @omagaleria