Esquina da Padre Mororó com a São Paulo. A luz do poste é forte. Chega gente. Na entrada, um segurança de semblante calmo recolhe bilhetes. Tem churrasco e bebida ao redor, som alto de música brotando de dentro. O movimento é intenso, dá para notar. Mas também é pacato. Vibra diferente.
É mais um domingo nas imediações do Clube Santa Cruz, Centro de Fortaleza. O interior da casa espelha o externo. Passado o portão de entrada, o amplo espaço revela corpos e corpos dançantes. A banda de forró emenda sucessos, para delírio dos presentes. Celebrar a vida está na ponta dos pés e no cheiro no cangote. Bonito de ver.
A sensação é de ingressar num portal, adentrar em outro tempo. Mesas de plástico ao redor do salão, venda de alimentos à base de fichinha e dezenas de ventiladores para aplacar o calor comprovam a teoria. Homem paga R$15 para entrar; mulher, R$10. “Não pretendemos mudar nada”, dizem os arrendatários do local. Mudar para quê? A tradição consagra o Santa Cruz.
O público responde com gosto ao costume de frequentá-lo. Todo domingo é dia. Não existe saudosismo: passado e presente coexistem, e talvez até futuro, nesse pedaço importante da cultura de Fortaleza. Mudou quase nada desde que Francisca Nunes começou a marcar presença no recinto. A idade da dona de casa é alinhada à da maioria que ali está. Tem 53.
“Vai fazer nove anos que eu frequento o Clube. Moro no Álvaro Weyne. Descobri por meio de um casal amigo, muito festeiro. Me viciaram em vim pra cá”, conta entre um bailado e outro em frente à mesa que adotou como preferida. Adoeceu do joelho durante um tempo, mas nem isso diminuiu a vontade de estar ali. Voltou o quanto antes.
“Amo forró. Até eu morrer, vou dançar. E aqui é calmo, não tem violência. As pessoas bebem, mas não tem briga. Só ando em lugar que é assim”. Na mesa da matriarca, itens indispensáveis em qualquer outra mesa ao redor: cervejinha, tira-gosto, um pouco d’água. Em algumas, até leque. Tem calor que ventilador nenhum dá jeito.
Amizade é outro ponto importante. Estar no Santa Cruz é feito dobrar na rua de casa. Todo mundo se conhece. E a quem não foi apresentado ainda, o enlace é rápido. De repente, já estão unindo mesas, dividindo pinga, chamando para dançar. Dona Francisca reitera: “É bom demais, eu gosto”. E continua no arrasta-pé.
Como tudo começou
As origens do Clube são incertas. Conforme Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, tudo indica que a Associação Desportiva e Recreativa Santa Cruz Futebol Clube tenha surgido no início de 1982 – uma vez os estatutos referentes à fundação serem registrados no Cartório Melo Júnior em 29 de abril daquele ano.
Apesar de, pelo nome, ser uma agremiação desportiva de futebol, a sede, na esquina das ruas Padre Mororó e São Paulo, sempre promoveu "festas dançantes memoráveis". “Creio eu que foi o que ajudou a manter o clube vivo”, arrisca o jornalista e pesquisador. À boca miúda, contudo, outras versões se sobrepõem.
Há seis anos arrendatário do estabelecimento, o músico José Bezerra Bandeira, o famoso Zé Bandeira, 69, afirma que a associação nasceu na década de 1970. Durante um período – também incerto – foi desativada pelos sócios, funcionando novamente mediante aluguel por outros empreendedores. Nunca mais parou de lá para cá.
“O funcionamento tradicional é aos domingos, de 18h30 às 23h. Mas, aqui e acolá, a gente aluga para outras pessoas fazerem evento – aos sábados, por exemplo”, situa o forrozeiro. Outra peculiaridade são as atrações, capazes de animar qualquer um: as bandas Zé Bandeira, Zé Iris, Zé Ivan, Dinho, Xote Swingado, Bota pra Cima e Soares do Sax são algumas.
Por sua vez, é o Forró de Gafieira que caracteriza o lugar. De tão importante, o gênero musical foi parar na Câmara Municipal de Fortaleza quando, em 2020, sediou uma sessão solene em homenagem a ele. O momento foi promovido pelo vereador Márcio Martins (União Brasil). No texto do requerimento, há uma menção ao Clube Santa Cruz.
Lá, consta que o Movimento da Gafieira nasceu na já citada década de 1970. À época, existia a boemia da alta sociedade que o “gueto” (classe popular) não podia frequentar. O jeito foi criar um movimento de forró próprio. Juntamente com samba e choro – chamado Forró de Cabaré – a iniciativa se expandiu, difundindo-se na região do Pirambu.
O Clube Santa Cruz surgiu depois disso, levando para o palco forrozeiros e sanfoneiros descendentes de Luiz Gonzaga (1912-1989), mas também primando por outros segmentos – a exemplo de Forró de Gafieira, Choro e o Samba cantado (brega). O Forró de Gafieira, por sinal, é variação rítmica e musical genuinamente cearense.
Os primeiros registros remontam aos clubes de forró instalados na periferia de Fortaleza há mais de 40 anos – tradição passada entre gerações de amantes. Na sequência, o gênero ganhou escolas de danças e casas de forró que ainda remanescem no centro da cidade, com destaque para o Clube Santa Cruz.
“A característica do gênero é o modo peculiar dos dançantes, que se alternam entre movimentos de cortejo da dama ao mais evoluído jogo de dança, tendo no tablado a execução de músicas afeitas ao samba, choro e forró. Numa fusão, formam o Forró de Gafieira”, completa o requerimento.
Festa com bingo
Faz sentido. Foi nessa dinâmica corporal que encontramos o casal de professores Samanta Fortes, 34, e Caio Teixeira Silveira, 28. Destacam-se na multidão pela idade destoante da maioria ali. Os motivos para ocupar o ambiente são os mesmos do restante, contudo: encontraram ali um lugar tranquilo e amplo para dançar forró.
“Tem alguns forrós na cidade que as pessoas vão pra namorar e tal. Mas aqui é basicamente pra dançar”, destaca Samanta. “Não moramos muito perto, mas vale a pena o deslocamento para estar aqui”. Na primeira vez que foram ao espaço, há alguns meses, não levaram ninguém, era visita de experimentação. Agora, já foram acompanhados.
“O público daqui tem uma pegada mais de bolero, e a gente gosta muito. Ficamos até observando os casais mais antigos dançarem para que possamos aprender”, confessa. Mirem talvez na dupla José Pereira, 72, e Rita Maria, 66. O motorista e a dona de casa são amigos e há oito anos dançam no Santa Cruz.
Para seu José, a experiência é de estar em casa. “Por isso a gente frequenta sem medo. Moro no Tancredo Neves, mas todo domingo eu tô aqui. Em vez de estar em casa assistindo televisão, enferrujando, venho pra cá. Dançar é saúde”, festeja. Dona Rita não fica atrás. A maquiagem chega a borrar de tanto encostar o rosto no rosto do parceiro de baile.
“Conheci esse lugar por causa dele. Em outros espaços é mais apertado, mas aqui é folgado. Moro no Autran Nunes e só saio daqui às 21h30. Tenho dois filhos e quatro netos, mas nenhum herdou essa vontade de dançar forró. Uma pena”, gargalha.
De repente, a banda silencia. Todo mundo se aquieta. É hora do bingo, outra prática célebre no Clube. O prêmio aguardado, de R$100, faz com que a atenção reine, bem como o clima de camaradagem. Risadas de um lado, vivas do outro, e tudo se consome.
Agora a pista de dança é liberada. O Santa Cruz renasce em movimento. No próximo domingo – e no outro e no outro – será possível ouvir sanfona e triângulo ao longe, a coisa linda do forró. E sentir suor na pele e a vida se expandindo. Pode entrar. É sempre festa.