Ministério Público do ES obtém decisão judicial para registro de Clarinha um dia antes da morte

Com isso, acredita-se que a mulher não será enterrada como indigente. Ela estava internada em estado vegetativo há 24 anos

Um dia antes da morte de Clarinha, como era chamada a paciente que estava em coma há 24 anos, o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) obteve decisão judicial que garantiu o registro civil dela. Com isso, acredita-se que a mulher não será enterrada como indigente. Ela estava internada em estado vegetativo no Hospital da Polícia Militar (HPM), em Vitória, e morreu na noite de quinta-feira (14) após complicações de uma broncoaspiração.

Em nota divulgada no último sábado (16), o MPES explicou que, pela necessidade de confeccionar o registro civil de nascimento de Clarinha, em 2022 as demandas relacionadas a ela passaram a ser encaminhadas ao 10º Promotor de Justiça Cível de Vitória, que detém atribuição em matéria de registros públicos. As buscas pela identificação eram realizadas pelo Grupo Especial de Trabalho Social (Getso) até a extinção do órgão.

A confecção do registro civil era necessária para que a existência de Clarinha fosse reconhecida juridicamente, garantindo atendimento junto à área da saúde em instituições e órgãos públicos. Com isso, a ação judicial teve início no dia 19 setembro de 2022.

Na última quarta-feira (13), o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Municipal, Registros Públicos, Meio Ambiente e Saúde de Vitória julgou procedente o pedido “para determinar que seja lavrado o assento de nascimento tardio da pessoa apelidada por ‘Clarinha’, no Cartório de Registro Civil – Comarca da Vitória”.

Com a morte da mulher no dia seguinte, os servidores do Hospital da Polícia Militar do Espírito Santo foram contatados  para tomarem conhecimento da ação judicial. O coronel da Polícia Militar Jorge Potratz, que cuidou da paciente ao longo dos anos, ficou responsável pela autorização judicial de liberação do corpo, sepultamento e demais providências relacionadas ao óbito. Na nota, o MPES informa que “prestará todo auxílio quanto ao pedido em questão”.

Com isso, diz o MPES, “acredita-se que ‘Clarinha’ não será enterrada como indigente”. “Será feita solicitação judicial para que sua certidão de óbito seja lavrada em nome de “Clarinha”, contendo informações como o local definitivo do sepultamento do corpo, além do registro fotográfico e papiloscópico dela, a fim de viabilizar eventuais esclarecimentos caso surja, no futuro, fato novo. Inclusive, será solicitada a coleta de material genético para eventuais exames.”

BUSCAS POR CLARINHA

Ainda conforme o MPES, apenas na sexta-feira (15), um dia após a morte de Clarinha, três famílias entraram em contato com a instituição e manifestaram interesse em realizar exame de DNA para confirmar possível parentesco com a mulher. “O Ministério Público busca junto aos órgãos competentes auxílio com relação a essas demandas”, declarou.

Após uma reportagem no ‘Fantástico’, em 2016, o MPES afirma que 102 famílias procuraram o órgão tentando identificar Clarinha como uma possível parente desaparecida. Do total, 22 casos chamaram mais atenção pelas fotos ou pela similaridade dos dados próximos ao perfil pretérito da mulher.

Após uma triagem mais detalhada, quatro casos foram descartados por incompatibilidade de informações ou pelo fato de as pessoas procuradas já terem sido encontradas. As outras 18 pessoas foram divididas em dois grupos para a realização dos exames de DNA. Os resultados, porém, mostraram-se incompatíveis para traços familiares.

RECONHECIMENTO FACIAL E DNA

Em 2020, uma equipe de papiloscopistas da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) em atuação no Epírito Santo tomou conhecimento do caso. A equipe utilizou o processo de comparação facial, com buscas em bancos de dados de pessoas desaparecidas com características físicas semelhantes às de Clarinha.

Com essas buscas, chegou-se a uma criança de 1 ano e 9 meses desaparecida em Guarapari, no litoral do Espírito Santo, em 1976. À época, a família da menina, que é de Minas Gerais, passava férias no estado. Um exame realizado por uma empresa especializada em reconhecimento facial do Paraná concluiu que havia “compatibilidade” entre as imagens de “Clarinha” e da criança.

Com os novos elementos, o material genético foi enviado para a Polícia Civil de Minas Gerais, onde está arquivado o perfil genético dos pais da menina desaparecida. Porém, em agosto de 2021 foi informado que os materiais genéticos não eram compatíveis.

O ACIDENTE DE CLARINHA

Clarinha foi levada ao antigo Hospital São Lucas em 2000, após ser atropelada por um ônibus no dia 12 de junho. Segundo relatos de testemunhas, ela estava fugindo de um perseguidor, também não identificado, e correu para uma avenida movimentada no Centro de Vitória. Ela assou por diversas cirurgias. O cérebro foi afetado, impedindo que ela retornasse de um coma profundo.

A mulher estava sem documentos e com as digitais desgastadas. Com isso, buscou-se, em um primeiro momento, encontrar algum conhecido entre as testemunhas do acidente, mas ninguém tinha informações da paciente. Ela, então, foi transferida para o Hospital da Polícia Militar, onde foi apelidada de Clarinha pela própria equipe médica. Nenhum parente ou amigo a visitou ao longo dos anos.

Na última quinta-feira (14), o médico Jorge Potratz, já aposentado, falou ao g1 sobre a tristeza de não ter resolvido o “mistério de Clarinha” e por não ter conseguido encontrar a família dela. “É muito triste ter esse desfecho, mas temos que lembrar que Deus tem um propósito. Em um futuro vou entender tudo isso. Tentamos tornar a vida dela, que é tão difícil, com mais dignidade. É triste esse fim”, disse.