Dez meses antes de ser assassinada pelo ex-companheiro, a costureira Maria Rosemeire de Santana prestou boletim de ocorrência em desfavor de Severo Manoel Dias Neto, pai dos dois filhos do casal e requereu medida protetiva de urgência, com base na Lei Maria da Penha. O pedido foi deferido. Família, Justiça e Polícia. Todos estavam cientes dos riscos que a mulher corria, e mesmo assim o maior ato de violência aconteceu.
Rosemeire foi morta no último dia 2 de abril, dentro de casa, na frente das crianças e da mãe, depois de 16 anos de convivência entre vítima e agressor. Severo fugiu e na noite dessa terça-feira (9) foi preso preventivamente. Antes do homicídio, Maria pediu ajuda às autoridades mais vezes. Em novembro de 2018, conforme os autos, Severo Manoel descumpriu a medida protetiva pela primeira fez e invadiu a residência da vítima.
Ciente da proibição de manter contato com a mulher e de ver os filhos, quando voltou à casa, o homem disse que estava ali porque "esses papel não vale de nada"(sic). No fim do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou que o Poder Judiciário cearense era o segundo do Nordeste a mais deferir medidas protetivas.
No primeiro trimestre de 2019, só pelo Juizado da Mulher de Fortaleza, foram 1.470 medidas protetivas deferidas. No ano passado o número chegou a 4.891, e em 2017 6.454. De acordo com o levantamento do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), foram 12.815 medidas em dois anos e três meses.
Os números e a ocorrência envolvendo a costureira Maria demonstram a realidade de milhares de mulheres que tentam se proteger e evitar entrarem para as estatísticas de feminicídios. A dificuldade de se manter longe dos agressores, por vezes determinada por questões financeiras - como trocar o endereço e recomeçar em outro lugar - , aliada à falta de proteção por parte do poder público, matou Rosemeire e tantas outras.
Levantamento do Tribunal de Justiça aponta que, atualmente, há cerca de 21 mil procedimentos por violência doméstica em tramitação no Juizado da Mulher de Fortaleza. Para a diretora do Departamento de Polícia Especializada de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPEGV), delegada Rena Gomes, os números mostram que as vítimas passaram a dar mais credibilidade aos órgãos públicos.
"Só na Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza temos 670 inquéritos instaurados. O aumento das denúncias é positivo. Já na delegacia, a titular avalia a necessidade da vítima ir para um abrigo. Nos casos que há medida protetiva deferida pelo Poder Judiciário e, após o deferimento, o homem descumpre, ele pode ser preso em flagrante imediatamente. Se não for possível prender em flagrante, a vítima deve retornar à delegacia e aí pode ser pedida a prisão preventiva", destaca Rena Gomes.
Um dos inquéritos da DDM de Fortaleza é relacionado ao caso de Maria Valentina (nome fictício). A reportagem conversou com a mulher vítima de uma série de agressões do ex-namorado, e ela afirma: "é extremamente difícil assumir que você realmente precisa de ajuda pra sair de um ciclo abusivo em um relacionamento. Tomar a decisão de fazer a queixa, de pedir a medida, de iniciar todo o processo é uma mistura de vários sentimentos que mexeram e ainda mexem com o meu psicológico".
A vítima conta que, mesmo meses depois, sua saúde mental não voltou a ser mesma. A dor da experiência de ter passado por repetidas agressões até perceber que não merecia aquilo fez com que ela escutasse a família e pedisse a medida protetiva.
"Eu já estava completamente sem forças para lidar com a situação. Acredito que a medida protetiva seja fundamental e que funciona em algumas situações, infelizmente ainda não em todas, até porque a medida não impede que o sujeito se aproxime de mim ou de qualquer outra vítima e sim só tem efeito depois que as autoridades forem acionadas, o que em alguns casos pode ser tarde demais", lembrou Valentina.
A professora Socorro Osterne, membro do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ressalta que quando o Estado concede a medida e mesmo assim a mulher morre, isso mostra que não existem ações sólidas para retirar essa vítima do convívio junto ao agressor.
Juizado da Mulher de Fortaleza deferiu 1.470 medidas protetivas no primeiro trimestre de 2019. Na prática, amparo judicial não garante sobrevivência feminina
"A medida protetiva é uma coisa maravilhosa. Mas, na verdade, há mulheres que não ficam garantidas porque falta retaguarda. Claro que ainda tem o problema das mulheres machistas. As que pedem a medida e em determinado momento autorizam o homem a chegar perto. Isso é porque a mulher gosta de apanhar? Não. Mulher não gosta de apanhar. É preciso considerar questões emocionais", pontuou Socorro.
Celeridade
Conforme lei, os pedidos de medidas protetivas de urgência devem ser observados em até 48 horas. Na tentativa de dar celeridade aos casos emergentes, em fevereiro deste ano o projeto que permite que delegados decidam sobre estas medidas teve parecer favorável da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH).
Rena Gomes considera que, sendo o delegado, muitas vezes, a primeira autoridade que toma conhecimento acerca do ato de violência contra a mulher, é importante conferir a ele esse poder de decisão em prol de a vítima já sair com a devida proteção: "No meu entendimento não há nenhum prejuízo que o delegado possa deferir. As medidas mais comuns são de afastamento e proibição de ligação", disse.
Levantamento do Tribunal de Justiça aponta que, atualmente, há cerca de 21 mil procedimentos por violência doméstica em tramitação no Juizado da Mulher de Fortaleza
Outro projeto de lei tramita prevendo aumentar em um terço a pena para o crime de feminicídio, nos casos que o autor já tiver anteriormente descumprido medidas protetivas na Lei Maria da Penha. Hoje, segundo o Código Penal, quando um agressor mata após violar a medida, o crime de descumprimento é desconsiderado em função do homicídio, sem agravamento. A delegada opinou ser importante aumentar a pena, já que "sem sombra de dúvidas já existe nesses casos periculosidade anterior do agressor".
A reportagem solicitou entrevista com a juíza titular do Juizado da Mulher de Fortaleza, Rosa Mendonça, para obter mais informações sobre deferimento das medidas protetivas no Estado. Porém, a entrevista com a magistrada foi cancelada e, conforme a assessoria do TJCE, não poderia mais ser remarcada.