A violência é um reflexo e, ao mesmo tempo, um agravante das desigualdades socioeconômicas. É o que mostram os dados e o que falam os especialistas. Os números de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em Fortaleza mostram uma relação direta.
Em 2020, as três Áreas Integradas de Segurança (AISs) - divisão da cidade feita pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) - que apresentam os bairros com os mais baixos IDHs são as mesmas que têm os maiores números de homicídios. Enquanto isso, as três AISs com os territórios com os maiores IDHs tiveram os menores números de CVLIs.
No ranking de CVLIs - homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte - do ano passado, conforme dados da SSPDS, a AIS 9 (confira a lista de bairros no infográfico abaixo) teve o maior número de ocorrências, 210, seguida pela AIS 2, com 166 crimes, e pela AIS 3, com 162 casos.
Na outra extremidade do ranking, estão a AIS 1, com o menor número de homicídios do ano, 52; a AIS 10, com 71 mortes violentas; e a AIS 4, com 74 crimes.
IDHs dos bairros
O Índice de Desenvolvimento Humano foi calculado no Brasil, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pela última vez em 2010. A partir dessas informações, a Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) calculou os IDHs de cada bairro da Capital.
As AISs com os menores números de homicídios têm os melhores IDHs: na AIS 1, os bairros Meireles (0,95) e Aldeota (0,87) têm o Índice considerado alto pelo IBGE - ou seja, acima de 0,8. E o bairros Mucuripe (0,79), Varjota (0,72) e Praia de Iracema (0,72) têm IDH médio - entre 0,5 e 0,79. E apenas dois bairros têm o Índice baixo - inferior a 0,5.
A AIS 10 tem um bairro com o IDH alto (Dionísio Torres, 0,86), sete bairros com o IDH médio (Papicu, Lourdes, Cidade 2000, Guararapes, Engenheiro Luciano Cavalcante, Joaquim Távora e Cocó) e cinco bairros com o IDH baixo. Enquanto a AIS 4 tem três bairros com IDH médio (Centro, Farias Brito e São Gerardo) e seis bairros com IDH baixo.
Já nas três AISs com mais mortes violentas, todos os bairros têm IDH baixo: na AIS 9, são dez bairros, com destaques negativos para Canindezinho e Parque Presidente Vargas (ambos com IDH 0,14) e Planalto Airton Sena (0,17).
Na AIS 3, são 12 bairros, inclusive Conjunto Palmeiras (IDH 0,12) e Jangurussu (0,17). Enquanto na AIS 2, são oito bairros, entre eles Genibaú (0,14) e Siqueira (0,15).
Desigualdade repercute em todos os indicadores sociais
O pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), sociólogo Luiz Fábio Paiva, lembra que "nós somos um dos países mais desiguais do planeta. Quando a gente fala de desigualdade social, a gente não fala só de desigualdade econômica. Esse é um fenômeno que tem múltiplos efeitos. Ele tem uma repercussão na saúde. Esses bairros com menor IDH também são bairros mais atingidos por problemas de saúde. A desigualdade repercute em todos os indicadores sociais. Vai incidir sobre a educação da população, acesso ao mercado, acesso à Justiça, às condições de vida, à salubridade".
O membro do Comitê de Prevenção e Combate à Violência (CPCV), da Assembleia Legislativa do Ceará, sociólogo Thiago de Holanda, corrobora que "a violência é resultado da segregação. A exclusão social, a desigualdade, são marcadores fundamentais para compreender a dinâmica da violência, dos homicídios, nas cidades brasileiras, na América Latina".
"As áreas mais degradadas, mais precarizadas, onde a juventude tem menos oportunidade, onde tem condição de habitação pior, é onde realmente a violência e outros problemas sociais profundos encontram lugar para se expandir, se fortalecer", diz Thiago Holanda, sociólogo.
Caio Feitosa também é sociólogo e mora no bairro Bom Jardim, que está localizado na AIS 2, área que reúne os bairros com pior IDH de Fortaleza e onde foi registrado o segundo maior número de homicídios em 2020. Ele é associado ao Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), que desenvolve ações sociais diversas no mesmo bairro, inclusive de enfrentamento à violência.
Feitosa acredita que "o esquecimento, a falta de ação estatal, no sentido de gerar proteção social, gera mais condições para que grupos armados criminosos se expandam em determinados territórios. Não apenas a força do Estado é necessária, mas também a ocupação com cidadania".
Paiva ressalta que "as pessoas que moram nos bairros pobres não são as mais violentas ou as mais propensas a cometer crimes. Essas pessoas, na verdade, sofrem com as condições sociais que criam os meios para que o crime aconteça. Se você observar a prisão de grandes lideranças do tráfico de drogas, em Fortaleza, eles foram presos nas áreas nobres. Mas onde é que o crime, as dinâmicas de território, de controle, onde é que se faz um varejo da droga?! Isto acontece nos bairros mais pobres, onde se concentra a população mais pobre, negra, que sofre também com os fenômenos da discriminação e do racismo. É a população que mais precisa de Segurança Pública".
Segundo Feitosa, o Bom Jardim e bairros em seu entorno "têm muitas potencialidades, uma população grande, uma população trabalhadora ativa". Mas, devido as desigualdades, os moradores sofrem com a violência.
"Impacta diretamente na qualidade de vida, na saúde mental, na coesão comunitária, nas oportunidades de conviver no bairro, de viver tranquilamente, de conversar sobre tudo que quiser, de transitar nas ruas e nas diversas comunidades, de estar na vida social e política do bairro", defende Caio Feitosa, morador do Bom Jardim.
Vítimas da violência
O técnico de laboratório Júnior Sobral, é morador do bairro Parque Presidente Vargas, na AIS 9, que tem um dos piores IDHs da Capital, apenas 0,14. Ele anda pela região com medo e já foi assaltado por lá duas vezes, sendo que em uma delas não entregou a motocicleta, e um criminoso atirou duas vezes contra ele, mas não acertou o alvo. Sobre os homicídios, ele diz que são constantes.
"A questão da violência aqui é como em todos os bairros, está presente sempre. A gente não tem segurança, tranquilidade para sair nas ruas, pelo fato de que a qualquer momento a gente pode ser abordado e constrangido. O Estado deixa muito a desejar. A presença deles junto com a gente, a assistência, o preventivo é muito deficiente. Deveria ter mais presença das autoridades aqui no bairro", aponta Sobral.
Mesmo as regiões onde há menos homicídios não estão livres da violência. O aposentado Lucivaldo Costa, morador do bairro Meireles, onde o IDH é o mais alto de Fortaleza, 0,95, que fica localizado na AIS 1, onde teve o menor número de homicídios, nunca viu um assassinato na região. Mas teme por assaltos. "Não me sinto seguro, eu vejo muitos assaltos nessa região. Eu tenho muito medo, não saio para a periferia. Minha vida é só nessa região", comenta.
Foco em inteligência para combater criminalidade
O superintendente de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), Helano Matos (que assumiu o cargo em setembro do ano passado), reconhece a importância de cruzar os dados da violência com indicadores socioeconômicos, o que está sendo realizado pelo Órgão vinculado à SSPDS, segundo ele.
"Nós estamos desenvolvendo hoje, na Secretaria da Segurança Pública, através da Supesp, várias estratégias para redução da criminalidade no Ceará. Nós temos o uso de várias tecnologias modernas, promissores equipamentos e algoritmos, para que a tecnologia ajude a tomar decisões na Segurança Pública. Além disso, temos também operações que estão sendo desencadeadas como estratégia de combate à criminalidade".
Matos cita a Operação Apostos (Abordagens Policiais e Saturações Territoriais Ostensivas), que tem fases deflagradas desde o início de dezembro último, como exemplo de ação voltada para combater a criminalidade a partir das estatísticas. A ofensiva conta com a participação das vinculadas da SSPDS (polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros, Supesp e Perícia Forense), Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará (SAP), Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) e Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC).
"Já está começando a ter resultado. No futuro a curto prazo, a ideia é ampliarmos as operações que existem, aplicarmos cada vez mais essas tecnologias que já temos desenvolvidas, para que, de forma focada, consigamos reduzir a criminalidade", conclui o superintendente.
Os especialistas em Segurança Pública ouvidos pela reportagem concordam que o Estado precisa investir mais justamente em Inteligência, ciência e polícia investigativa, além de ações sociais, ao invés de priorizar o policiamento ostensivo, para diminuir o poderio das facções criminosas e, consequentemente, os homicídios.
"A resposta do Estado, com mais polícia ostensiva, fez com que mortes por intervenção policial aumentassem. Houve mais confrontos, tiroteios. A estratégia, que a gente discute no Comitê de Prevenção a Homicídios, uma das recomendações, é que polícia é importante, sobretudo polícia investigativa, para saber quem são esses matadores, como as armas chegam a esse território, como é que tem tanta munição circulando. Como é que esses projetos sociais não chegam aos jovens que mais precisam, por que os jovens estão saindo das escolas?", questiona Thiago de Holanda.