Sem festas juninas, brincantes lamentam: 'É uma dor inexplicável, que nem as lágrimas contam'

São dois anos sem os festejos juninos. Os impactos cultural, financeiro e emocionais são relatados por aqueles cuja história de vida se confunde com a festa mais tradicional do Nordeste

A pandemia abafou o grito eloquente das quadrilhas juninas, cessou a sinergia entre brincantes e público e forçou a troca das quadras pelo espaço virtual. Manter a magia viva após dois anos sem São João presencial tem sido uma missão ingrata. Os impactos cultural e financeiro, além dos danos emocionais, são relatados por aqueles cujas histórias de vida se confundem com a festa mais tradicional do Nordeste.

João Batista da Silva Cavalcante, de 35 anos, é um dos tantos cearenses em cujas veias corre mais que sangue, pulsa São João. Nascido no Dia do Santo que empresta nome aos festejos, "João Sozinho", como é conhecido na região do Cariri, já fez de tudo. "Brincante, correógrafo, projetista, marcador, noivo e compositor de músicas para as quadrilhas", enumera.

A lista é grande, assim como os prejuízos acumulados após dois anos sem os festejos, conforme avalia. "O Cariri é conhecido como um caldeirão borbulhante de cultura, são mais de 20 grupos impactados. O rico trabalho cultural que desenvolvemos foi interrompido e isso causa um prejuízo emocional, cultural e financeiro", considera o integrante da Quadrilha Nação Nordestina. 

João Sozinho, hoje correógrafo e projetista - pessoa responsável por criar o roteiro da quadrilha junina - conta que em anos anteriores o mês de junho marcava o ápice da preparação das quadrilhas. A rotina antes frenética deu lugar ao vazio deixado pela ausência dos festejos. "Tem um dano emocional muito forte", revela.

Esse mês está sendo desafiador. Não podemos nem ouvir uma música junina que os olhos enchem de lágrimas. Em anos anteriores estávamos na correria para a estreia, na preparação para as viagens e hoje nada disso acontece. 
João Sozinho
Coreógrafo
 

Os olhos boiando em água salgada é o retrato mais fidedigno deste mês junino para os integrantes. "A gente já chorou tanto. Sentimos tanta falta", confessa Lícia Maia, 23, da Agremiação Junina Cariri (AJC).

"A quadrilha faz parte da nossa vida, da nossa rotina. A preparação começa seis meses antes. É uma interação muito grande, nos tornamos uma família. Então é inegável a falta", pontua a brincante que há 4 anos dança em quadrilhas. 

É uma dor inexplicável, que nem as lágrimas contam.
Lícia Maia
Brincante

Sem apoio

O diretor da União Junina do Ceará e presidente da quadrilha Junina Babaçu, de Fortaleza, Tácio Monteiro, conta que enfrentar a paralisação dos eventos sem incentivo financeiro torna o desafio ainda maior. "Desde o ano passado amargamos a falta de incentivo por parte do governo. Os editais foram suspensos ou tiveram os valores reduzidos".

No ano passado, o edital "Ceará Junino", promovido pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) foi cancelado em abril. Já a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) teve o último edital de Apoio aos Festejos Juninos publicado em 2019.

Para tentar driblar as dificuldades financeiras, Tácio explica que a primeira estratégia foi realizar eventos virtuais, como "lives, podcast, concursos e festivais de danças". A programação em 2020 contemplou os meses de junho e julho. Já neste ano, ainda não há definição. 

"Organizar esses eventos virtuais é igualmente caro. Não tivemos editais da Secult, nem da SecultFor, portanto foi difícil. Neste ano estamos aguardando o resultado do edital. Se sair, faremos uma programação fora de época", revela. 

Neste ano, o Edital de Fomento para Grupos dos Ciclos da Cultura Tradicional Popular do Ceará (Secult-CE), cujas inscrições se encerram em maio, prevê incentivo para 138 projetos do Ciclo Junino, com um recurso de R$1,3 milhão, divididos entre as categorias de Grupo Quadrilha Infantil, Grupo Quadrilha Adulta e Grupo de Quadrilha da Diversidade. 

Sem São João presencial e com redução no número de eventos virtuais, o costureiro Antônio Eugênio Silva, que há 27 anos confecciona roupas juninas, lamenta os prejuízos e revela que, neste período, precisou demitir funcionários se reinventar. 

"Durante todo o ano, eram seis meses dedicados só aos eventos juninos. A preparação é longa e há muita demanda. Mas há dois anos tudo mudou. Precisamos nos reinventar e migrei para outros segmentos para pagar as contas". 

A queda de faturamento do ateliê "foi de 95%", confidencia Eugênio. Sem a habitual demanda, ele se viu na necessidade de demitir dez funcionários.

"Sem demanda, tivemos que cortar os funcionários e passei a confeccionar máscaras e algumas peças sobre encomenda para as lives. Agora estou na área da decoração até que tudo volte ao normal e eu possa retornar às costuras". 

"Internet é um quebra galho"

Para Lícia, as ações virtuais não suprem a lacuna deixada pela ausência das quadrilhas. "Internet é um quebra galho. O que move o espetáculo é o público". Além disso, Tácio lembra que os impactos vão além apenas dos integrantes. "Há toda uma rede produtiva que não se beneficia com essas lives. Temos barraqueiros, costureiros, chapeleiros, enfim, uma rede enorme que completamente impactada".  

Hoje fazemos algo [de forma virtual] somente para deixar o movimento vivo, ativo. Mas não temo como manter a rotina de antes, que era frenética. As lives apenas atenuam os impactos da pandemia.
Tácio Monteiro
Diretor da União Junina do Ceará

Na avaliação de Antônio Eugênio, as lives contemplam apenas um pequeno grupo "que se resume aos grandes artistas". "Elas acontecem em formatos de parceria, são inviáveis para nós [quadrilheiros]. Não dá para suprir as nossas necessidades", acrescenta Eugênio.   

Perspectiva para 2022

Após dois anos sem eventos presenciais, João Sozinho projeta que após o período pandêmico, o meio junino terá que realizar um forte resgate cultural. "Os brincantes se distanciaram. O calor humano, que é nossa marca, foi afetado. Acredito que teremos dificuldades para retomar o movimento quando tudo isso passar".

Lícia concorda e avalia que além dos danos culturais já mencionados, o impacto financeiro ecoará em 2022. "Realizar uma quadrilha é muito caro. Uma roupa da noiva, por exemplo, pode custar mais de mil reais. E tudo isso quem mantém somos nós, brincantes, já que há pouco incentivo cultural. Portanto, para a próxima edição, ainda com a economia muito abalada, teremos muita dificuldade".

Para Tácio, o momento adverso vivido com a pandemia pode ser um marco na trajetória junina cearense. "Em um primeiro momento os grupos sentirão muitas dificuldades. Mas podemos este momento para  repensar os custos do processo e avaliar formas mais viáveis de realizar grandes eventos. Porém, o mais importante seria termos apoio e incentivos financeiros por meio de editais", conclui.