Reivindicar terras para a agricultura familiar ou exigir a garantia no uso de recursos hídricos para a produção e consumo são exemplos de conflitos no campo historicamente presentes no Ceará. O aumento de casos em 2019, no entanto, reacende o alerta. Foram oito conflitos por água registrados no Estado, segundo o Caderno de Conflitos no Campo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A ferramenta tem como proposta dar visibilidade aos acontecimentos no campo. Juntamente com 2010, o ano passado somou o maior número de conflitos por água da década. Mais de 890 famílias foram impactadas diretamente em 2019. Em 2018 e 2017, não houve registro.
O conflito decorre da falta de acesso à água potável ou do recurso para produção agrícola ou pesca. No Ceará, os conflitos registrados em 2019 foram o impedimento de exercício profissional de pescadores dos municípios de Parambu e Arneiroz; destruição e poluição, em Quiterianópolis e Tamboril; diminuição de acesso à água para trabalhadores rurais, em Quixadá; ameaça ou expropriação de território ribeirinho, em Ubajara; e danos causados pelas manchas de óleo, em Fortim e Aracati.
“O que vai diferenciar o conflito por terra de um conflito por água é o fato. O que for mais preponderante na reivindicação das comunidades é que vai dizer sua natureza. Muitos estão relacionados à questão da terra, da água, do trabalho”, explica Tiago Valentim, coordenador regional da CPT Ceará. “Se descobre isso ou pela fonte primária, consultando as pessoas envolvidas, ou através de documentos, cartas, notas que evidenciem que aquele conflito exigia terra ou água”.
Valentim, explica ainda que um conflito só é registrado no Caderno com sua devida confirmação. Além disso, a CPT Nacional realiza o acompanhamento de conflitos judiciais que envolvem mandantes e executores de assassinatos. “A maioria está na impunidade. Vários ameaçados em determinado ano aparecem como assassinados depois. Muitos conflitos são recorrentes, o que nos mostra que há uma baixa resolução deles”.
Açudes
As áreas ribeirinhas se destacam nos conflitos. Um integrante do Conselho Pastoral que presta apoio jurídico a pescadores no Sertão cearense, explica que “após construído um açude, muitas pessoas tomam posse à vazante (faixas de terras às margens de açudes e barragens que são cobertas pelas águas durante o período chuvoso e descobertas durante a estiagem). Em municípios, como Parambu e Arneiroz, esses donos de terras não permitem que os pescadores exerçam sua atividade”, relata o homem que, por medo, preferiu não se identificar.
Nestes casos, as pessoas acabam recorrendo à Instituição. “Damos apoio pela assessoria jurídica e também mediamos formações com os pescadores”, conta. “Eles fazem essas denúncias nos momentos de reunião, nos quais se sentem à vontade, e a gente busca os meios de como resolver”. O projeto é realizado pela Cáritas Diocesana de Crateús e tem apoio do Conselho Pastoral dos Pescadores Regional Ceará e Movimento Nacional dos Pecadores.
À margem
Outro problema denunciado é a utilização dessas áreas que margeiam os açudes. “Proprietários instalam cercas dentro da bacia do Açude Arneiroz (no município homônimo), com grande número de animais que ficam permanentemente soltos dentro da bacia”, conta uma moradora e integrante de associação comunitária em Arneiroz. Ela também preferiu não se identificar. “Já denunciamos na Comissão Gestora do Açude junto à Cogerh. Até o momento não temos uma tomada de decisão que possa frear essa situação”, lamenta a moradora.
Outra demanda colocada é que o Estado remarque toda a poligonal do açude, que é o limite da Área de Preservação Ambiental. “Quando se constrói o açude, fica marcada uma área que é considerada área de preservação (cerca de 100 metros a partir da água), onde o proprietário tem de respeitar e onde os pescadores podem atuar. Como o açude foi concluído em 2005, os piques que foram feitos já não existem mais”, explica a integrante da associação.
A reportagem questionou a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) sobre sua atuação para amenizar os impactos gerados nas comunidades, mas até o fechamento não obtivemos respostas. Também demandamos a Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH) para saber como o órgão avalia a questão dos conflitos hídricos no Estado, também sem retorno. A equipe tentou, ainda, contato por meio da Ouvidoria do município de Arneiroz, mas igualmente não houve resposta até o fechamento.
Cenário
Para Claudemir Martins Cosme, doutor em Geografia e professor do Instituto Federal de Alagoas, que trabalha nas análises de conflitos no campo, para entender o aumento nos casos no Ceará é preciso compreender o cenário global. “Ocorre uma escalada nacional dos conflitos pela água, tendo como marco o ano de 2013, com 101 conflitos”, explica. “A partir daí, cresce ano a ano, praticamente dobrando em 2017, com 197 casos em todo o País. Em 2018, outro salto para 276. Mas, em 2019, uma escalada, o ápice, com incríveis 489 conflitos. Aumento de 77% em relação a 2018”.
Segundo o pesquisador, o avanço do agronegócio sobre as terras e as águas eleva os conflitos. “Estrutural e historicamente, o agronegócio avança no Ceará, causando conflitos e desagregando os territórios das comunidades”, explica. “Muitas vezes, os conflitos pela água decorrem dos conflitos pela terra. Há uma relação forte entre eles”.
Sobre a política agrícola do Estado, a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) informou, em nota, “que as ações por ela desempenhadas norteiam-se pelos princípios do atendimento ao consumo humano, da dessedentação animal e da convivência com o semiárido”. A SDA pontuou ainda que, no ano passado, garantiu abastecimento humano para 20.258 cearenses e assistência técnica a 67.918 agricultores, “sempre observando a convivência com o semiárido”. A nota ainda diz que “o órgão se dedica a executar políticas públicas voltadas apenas aos pequenos produtores”.