Postagens em redes sociais como Facebook e Twitter sobre o rompimento de uma tubulação da barragem de Jati, no município homônimo, no sul do Ceará, em 21 de agosto, usam informações sem comprovação para afirmar que o dano foi provocado por uma bomba e que o caso é fruto de uma “ação de sabotagem”. Algumas publicações também dizem que a Polícia Federal (PF) está apurando o suposto atentado ao equipamento da transposição do São Francisco. A informação não é confirmada pela PF.
As causas do vazamento na barragem ainda estão sendo apuradas, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável pela estrutura danificada. Portanto, não há como assegurar o que motivou a ocorrência. O órgão também não cogitou publicamente que o vazamento seja fruto de uma ação criminosa deliberada como um atentado a bomba.
O Comprova verificou que as imagens compartilhadas, em que aparecem os danos à barragem após o vazamento, são do local da ocorrência. Mas não encontrou evidências que confirmem as afirmações feitas nos textos que acompanham as imagens. Algumas publicações usam como fonte o deputado estadual do Ceará Francisco de Assis Cavalcante Nogueira (PSL), conhecido como Delegado Cavalcante. Ele afirmou em postagens e entrevista ter ocorrido uma sabotagem com explosivos no duto. A equipe do Comprova entrou em contato com a assessoria do deputado e foi informada de que “ele iria pensar se responderia”. Até a publicação desta checagem, não houve resposta.
O Comprova tentou falar com o perfil de Twitter @RaquelBlak que publicou conteúdo similar. Após a tentativa de contato, o tuíte foi apagado.
Como verificamos?
Por meio de busca reversa de imagens no Google e da ferramentas de monitoramento de redes sociais CrowdTangle, o Comprova pesquisou as primeiras postagens que sugerem a suposta sabotagem no rompimento do duto da barragem. As publicações mais antigas encontradas são do deputado estadual Delegado Cavalcante (PSL) que publicou as imagens e menciona em seu texto que havia indícios de sabotagem. O Comprova entrou em contato com a assessoria de Cavalcante para saber a fonte das suspeitas do parlamentar, mas não teve retorno até o fechamento dessa verificação.
Falamos com uma familiar de Raquel Blak,a titular de um dos perfis que publicou o conteúdo investigado, mas ela informou que Raquel não tinha interesse em conversar com a imprensa.
Em paralelo, a equipe procurou o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), a Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará (SRH) e a Prefeitura de Jati (CE) para entender a competência sob o equipamento danificado e as medidas que foram tomadas após o incidente, bem como esclarecer se os órgãos públicos suspeitam de sabotagem no duto. Também questionou a Polícia Federal e o Ministério Público Federal no Ceará (MPF) sobre possíveis investigações em curso após a ocorrência. O Comprova também ouviu duas entrevistas do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e levantou informações sobre o evento em veículos de imprensa cearenses.
Por fim, ouvimos o engenheiro civil Antônio Nunes de Miranda, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em segurança de barragens, para entender que hipóteses técnicas poderiam explicar o rompimento da tubulação em Jati.
Verificação
O vazamento foi registrado na tubulação de concreto da barragem de Jati, localizada em município de mesmo nome no sul do Ceará, no dia 21 de agosto por volta das 17h. Na ocorrência, segundo declaração do ministro Rogério Marinho, houve o rompimento de um duto que emite água para o Eixo Norte da transposição do São Francisco, em direção à Paraíba e ao Rio Grande do Norte.
Essa barragem faz parte do eixo inaugurado no dia 26 de junho pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e, além de ser um reservatório para as águas do Rio São Francisco, é o ponto inicial de outro projeto de transposição — o Cinturão das Águas do Ceará (CAC) — que é executado pelo Governo do Ceará com recursos da União. O trecho 1 do CAC, da qual a barragem de Jati faz parte, ainda está em fase de testes. A estrutura danificada integra a obra de competência federal. Após o ocorrido, Marinho disse que o vazamento foi em decorrência de “algum problema mecânico” no duto.
O rompimento ocorreu um dia após o ministro ter acionado a comporta que libera água da barragem de Jati para o Cinturão das Águas do Ceará. Nesta etapa do CAC, o eixo emergencial de 53 quilômetros deve assegurar segurança hídrica à Região Metropolitana de Fortaleza. A água correrá nos leitos dos rios Salgado e Jaguaribe até chegar ao Açude Castanhão, que abastece a capital e as cidades próximas. A estimativa dos governos estadual e federal é que cerca de 4,5 milhões de moradores sejam beneficiados pela obra.
No dia 21 de agosto, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), e o secretário dos Recursos Hídricos, Francisco Teixeira, foram a Jati. Na ocasião, Teixeira explicou que “na ombreira direita, tem uma tubulação que se inicia em concreto e depois um bloco, onde está a emenda da tubulação em concreto com a tubulação em aço. Então, parece que nessa emenda houve um rompimento, um vazamento da tubulação. Então, esse jato d’água é devido à pressão”. A água que jorrou causou um pequeno processo de erosão na barragem, mas não comprometeu a estrutura.
O vazamento foi contido algumas horas após a ocorrência. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, havia uma dificuldade de avaliação técnica da estrutura por causa da falta de iluminação naquele momento. Em razão do rompimento, por medida preventiva, duas mil pessoas residentes no raio de dois quilômetros da barragem de Jati foram evacuadas na noite de sexta-feira e madrugada de sábado. O Ministério do Desenvolvimento Regional e o governo estadual afirmam que não houve danos estruturais à barragem.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, o bombeamento no Eixo Norte da transposição foi temporariamente interrompido devido à ocorrência. O site do órgão informa que a “barragem Jati foi executada pela empresa Serveng-Civilsan, no período entre janeiro de 2013 e março de 2018”. No Portal da Transparência consta que o contrato da obra no lote 5 do Eixo Norte da transposição foi assinado pelo governo federal em outubro de 2012 e teve 15 aditivos no decorrer dos últimos anos. O custo da obra passou de R$ 518.070.114,88 para R$ 895.112.734,85.
A acusação
Nas redes sociais inúmeras postagens afirmam ter ocorrido uma sabotagem com explosivos no duto. As imagens compartilhadas, em que aparecemos danos à barragem após o vazamento são, de fato, do local da ocorrência. Mas os textos são inverídicos. Algumas publicações usam como fonte o deputado estadual Delegado Cavalcante.
A primeira menção de Cavalcante ao tema ocorreu no dia 22, durante a vistoria feita pelo ministro Rogério Marinho, em Jati. Em vídeo publicado no Facebook, Cavalcante aparece questionando o ministro sobre a hipótese de “sabotagem” ou “mão humana” no incidente, alegando que a obra hídrica era importante para a popularidade do presidente Jair Bolsonaro na região.
Na ocasião, o ministro respondeu que uma análise técnica deve indicar o motivo do rompimento. “Esse laudo é o que vai permitir, inclusive, que nós, enquanto Estado brasileiro, nos posicionemos para saber quem deu causa ao problema. E quem deu causa, certamente, vai ressarcir o Estado brasileiro. Então, pode ficar tranquilo porque nós vamos usar todos os meios aí para encontrar as causas e torná-las transparentes para todo mundo”, afirmou Marinho.
Apuração da ocorrência
Em entrevista à CNN no dia 22, o ministro Rogério Marinho disse que uma análise técnica identificará em até 40 dias se houve erro na engenharia, na execução ou no material usado na obra. O ministro não citou bombas ou suspeita de sabotagem. “A pressão da água de alguma forma desregulou o sistema, deve ter fechado o duto embaixo e isso explodiu a tubulação de cimento”, disse.
Perguntada por e-mail pelo Comprova sobre a suspeita de uso de bomba, a assessoria do Ministério do Desenvolvimento Regional retornou com uma nota que se limita a detalhar os pedidos de avaliação técnica do caso.
Segundo o texto, em 24 de agosto, o ministério solicitou às empresas responsáveis pela execução testes e comissionamento da obra que “relatórios técnicos sejam apresentados até o dia 28 de agosto sobre cada etapa de funcionamento desde a última quinta-feira (20), quando foram abertas as comportas”.
O ministério diz que só com os relatórios feitos pelas empresas envolvidas na Barragem Jati será possível avaliar as causas do rompimento. O órgão também afirmou que irá contratar uma consultoria independente, com definição até esta sexta-feira, 28 de agosto.
Nas postagens também consta que a suposta sabotagem estaria sendo investigada pela Polícia Federal. Procurada pelo Comprova, a prefeita de Jati, Maria de Jesus Diniz (PSD), se limitou a dizer que agentes da PF estiveram na cidade para uma investigação.
Questionada sobre a suspeita de bomba, a PF respondeu ao Comprova que “não divulga a existência ou não de possíveis investigações em andamento”. O órgão ainda complementa que “qualquer informação que circule nas redes sociais em nome da Polícia Federal que não tenha partido de nossos canais oficiais é de total responsabilidade de quem a divulgou.”
Por envolver o uso de recursos federais, o Comprova também contactou, via e-mail, o Ministério Público Federal no Ceará para saber se o órgão foi acionado para desenvolver ou abriu alguma investigação sobre o suposto atentado a bomba. A assessoria de Comunicação Social do MPF informou, que “realizou levantamento não identificando, até a presente data, procedimento instaurado ou representação (denúncia) recebida pela instituição sobre suposta sabotagem à barragem em Jati”.
Embora a estrutura danificada seja de competência da gestão federal, o Comprova consultou também à Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará sobre o assunto. O órgão foi questionado, via e-mail, se acompanhou os desdobramentos da situação após o rompimento da estrutura e se é possível apontar hipóteses do que tenha provocado a ocorrência. Além disso, a SRH foi indagada se solicitou alguma investigação oficial sobre um suposto uso de bomba na estrutura que teria provocado uma explosão local.
Por e-mail, a SRH reitera a competência do governo federal sobre a estrutura afetada e diz que “cabe ao Governo Federal qualquer investigação”. A nota também afirma que o secretário dos Recursos Hídricos, Francisco Teixeira, esteve no local e “descarta completamente a hipótese de atentado”. O texto acrescenta que “o mesmo, que é engenheiro e atua no serviço hídrico há várias décadas, garante que o acontecido foi um evento isolado ocorrido em função de algum problema de projeto, execução da obra ou operação”.
A secretaria também informou que o rompimento da estrutura não afetou o cronograma do Cinturão das Águas, que segue em fase de testes.
Análise técnica
O Comprova também entrevistou por telefone, o engenheiro civil, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em segurança de barragens Antônio Nunes de Miranda. Ele explica que a avaliação para apontar as causas desse tipo de ocorrência, geralmente, dura cerca de um mês. Na inspeção, são analisadas as estruturas de controle da água. “No caso lá de Jati, existe uma válvula dispersora e uma válvula de controle. Esses dois equipamentos é que deixam a água passar. No final da tomada de água, onde forma o chamado véu de noiva, aquela água como um jato, há válvula dispersora. Então, se houver algum problema ali, isto pode ser uma das causas”, aponta.
Antônio menciona alguns possíveis motivos para o ocorrido. Um deles, um defeito de funcionamento na tubulação e nas válvulas, que não é comum “porque são equipamentos muito robustos, próprios para durar muito tempo e para não dar problemas”. Outra possibilidade é de ordem operacional: a válvula pode ter sido fechada bruscamente. Isso geraria acúmulo de água, o que resultaria em estrangulamento de uma parte mais sensível da tubulação. O controle de válvulas geralmente é automatizado. Um erro na operação pode ocorrer, mas, na análise do engenheiro, também é raro.
Outra hipótese é que algum entulho, madeira ou resto de obra, tenha ficado na tubulação e provocado a obstrução da água, o que resultaria no estouro. Além disso, ele pondera que no final da tubulação em concreto há uma ancoragem no tubo de aço — para fazer a mudança de direção do fluxo da água — e esse bloco pode ter sofrido um rebaixamento. “Se tiver ocorrido, pode afetar a tubulação de concreto e provocar a ruptura”, completa.
O fenômeno que provavelmente ocorreu na barragem, segundo Antônio, é chamado na engenharia de “golpe de aríete”. Na prática é a resposta da água quando vem se deslocando em uma tubulação de grande extensão e algo a obstrui de repente. “É como se fosse um trem em alta velocidade que você parasse a locomotiva bruscamente. Os outros vagões vão se amontoar, pode engavetar. O mesmo acontece com a água. Quando você veda a tubulação de repente, toda aquela água que estava se deslocando para e cria uma onda de pressão que volta no sentido contrário ao fluxo. Essa onda pode destruir um ponto fraco da tubulação”.
O engenheiro acha improvável o ato ter sido sabotagem. O “golpe de aríete” não é um fenômeno comum, mas é muito estudado na engenharia, que trabalha justamente para evitar que ocorra. Até a causa ser descoberta, a tubulação não pode ser consertada. Os reparos que estão sendo executados em Jati são do “pé da barragem”, que sofreu pequena erosão devido o jato de água.
Por que investigamos?
Nesta terceira fase do Comprova, o projeto retomou o monitoramento e a investigação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal de ampla repercussão em redes sociais. As publicações verificadas são sobre a maior obra de infraestrutura hídrica do país, o Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF). Por isso, checar a veracidade desse conteúdo é tão relevante.
Desde que o trecho Leste foi inaugurado pelo presidente Jair Bolsonaro, em junho diversos boatos surgiram nas redes sociais. O Comprova já mostrou recentemente ser falso um vídeo que sugeria que o Governo do Ceará havia “sabotado” o canal da transposição inaugurado por Bolsonaro; que o Exército não refez todo o trecho da transposição do São Francisco inaugurado por Temer e Lula e que não há indícios de que a família Gomes tenha negócios no setor de transporte de água, sendo prejudicada pela inauguração da obra da transposição.
A desinformação sobre o ocorrido em Jati é prejudicial porque, além da ausência de fundamentação, impulsiona teorias conspiratórias e gera na sociedade um clima de desconfiança sobre o funcionamento de uma obra tão expressiva. A transposição do Rio São Francisco sofre grandes atrasos de entrega, e um dano a sua estrutura deve ser apurado com seriedade e resolvido de forma mais ágil e eficaz.
As publicações falsas sobre o tema ultrapassam 20 mil compartilhamentos. O tuíte do perfil @MBColunista foi compartilhado 2,5 mil vezes. Conteúdo semelhante teve 3,7 mil compartilhamentos em um dos perfis pessoais verificados pelo Comprova.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
O Diário do Nordeste integra a coalizão de 28 veículos de comunicação para verificar informações falsas e conteúdos enganosos e combater a desinformação. Esta checagem foi realizada por Diário do Nordeste, O Povo, Jornal do Commercio e O Estado de S. Paulo.