Entre o fim de abril e o início de maio, o Rio Grande do Sul passou a viver um cenário de tragédia com a ocorrência de enchentes em todo o estado. O episódio, que se arrasta ao longo das últimas semanas, não é isolado. Foi assim com as enchentes na Bahia em 2021 e 2022, com os deslizamentos em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, também em 2022, e com as inundações e deslizamentos ocorridos em Pernambuco, Alagoas e Paraíba no ano passado. Todos os eventos têm algo em comum: resultaram da crise climática que se instala no planeta.
No decorrer das ações de socorro ao Rio Grande do Sul, comandado pelo governador Eduardo Leite (PSDB), o noticiário tem se virado para o debate ambiental e passou a trazer um glossário extenso, com termos que vão desde "refugiados climáticos" até a emergente expressão "mudanças climáticas". O repertório da sociedade se alargou, mas o político também foi no mesmo sentido, quando a classe foi obrigada a se voltar para a problemática, ao envidar esforços emergenciais para mitigar os efeitos causados pelo desastre e ao pensar em ações que possam prevenir a ocorrência de tais incidentes.
Afora os investimentos bilionários aplicados emergencialmente por bancos de fomento ou entes públicos, qual a real responsabilidade dos políticos na resolução da problemática mundial? Que papel o Brasil, conhecido pelo seu potencial sustentável, pode assumir ou tem assumido na condução de iniciativas do tipo?
Para tentar dar uma dimensão para o assunto, o Diário do Nordeste conversou com três especialistas que atuam na interface entre o desenvolvimento sustentável, o direito ambiental e a atuação de agentes públicos, que explicaram de que modo o Estado - em suas diferentes esferas - deve participar da questão: Helena Stela Sampaio - Doutora em Sociedade, Território e Meio Ambiente pela Universidade das Ilhas Baleares (UIB) e professora do Departamento de Estudos Interdisciplinares da Universidade Federal do Ceará (UFC); Danielle Hanna Rached - Doutora em Direito Internacional pela Universidade de Edimburgo e professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP); e Denise Cristina Vitale Ramos Mendes - Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências prof. Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Qual a responsabilidade dos políticos nas ações de readaptação às mudanças climáticas?
HELENA S. SAMPAIO: A mesma responsabilidade que eles têm, sempre que a solução para o problema público for mais eficiente de forma coletiva, como é o caso da guinada econômica necessária para mitigar os efeitos maléficos das mudanças climáticas. É dizer, responsabilidade do Estado concomitante com os demais responsáveis. Na corresponsabilidade há um desafio enorme na gestão pública, pois se as ações geram bons frutos, há uma disputa para saber quem é mais "responsável", digamos competente, para desenvolvê-las. Mas se nas ações há dispêndio e desgaste, utiliza-se o sistema de competências constitucionais para indicar o ente e/ou a esfera de poder "mais responsável".
No capítulo constitucional da ordem econômica, fundada pelos valores do trabalho humano e da livre iniciativa, tem a "defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação" como princípio - dentre outros que remontam a preocupação e atuação nas mudanças climáticas, assim que não há ordem econômica sem ordem socioambiental. Assim como tem faltado concretizar planejamento para ambas.
O Brasil é um dos países que assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e, a partir disso, em 2009, criou a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). Quais foram os resultados visíveis desse compromisso ao longo dos 15 anos de existência da PNMC nas diferentes esferas da máquina pública?
HELENA S. SAMPAIO: Os resultados visíveis tiveram altos e baixos na gestão pública: conseguimos destaque no reconhecimento de que países em desenvolvimento podem e devem colaborar para mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas, ainda que de outras formas que não seja cumprindo meta de retorno de níveis de emissões de gases que aceleram ou são decisivos no avanço das mudanças, mas controlando ações maléficas de intervenção nos conjuntos vegetacionais e criando mecanismos de "desenvolvimento limpo". Mas também conseguimos, enquanto país, ter reconhecimento da má gestão na proteção ambiental, no que diz respeito ao controle de desmatamento, a ponto de termos um fundo financeiro sem atuação e com repasses suspensos. É dizer, uma gestão pública vulnerável aos gostos e desgostos de oligarquias, não em favor de sua gente e de seus recursos, como deve ser.
DANIELLE H. RACHED: Esse quadro se agravou drasticamente em 2019 com o governo negacionista e de extrema direita de Jair Bolsonaro, que determinou um revogaço de diversas portarias e decretos executivos, extinguindo órgãos Colegiados relevantes. Houve um forte esvaziamento e enfraquecimento da Política Nacional de Mudança Climática, associada a uma estratégia de fragilização da legislação socioambiental no Congresso Nacional. Esse retrocesso levou à redução de investimentos e na credibilidade dos compromissos ambientais do Brasil perante o sistema internacional, com a paralização do Fundo Amazônia por exemplo.
Em 2023, com a retomada do respeito aos objetivos da Constituição Federal de 1988, que prevê a proteção socioambiental, os direitos humanos e a participação social, o Ministério do Meio Ambiente tem conduzido a reconstrução das estruturas de governança para que a PNMC possa ser melhor implementada. Em termos concretos, pode-se mencionar os dados de redução do desmatamento da Amazônia em 40% em relação à 2023, as novas demarcações de terras indígenas (essenciais no combate ao desmatamento), a retomada do Fundo Amazônia. A vontade política dos governantes aliada a bons instrumentos de gestão é o caminho possível para enfrentarmos o problema.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: Infelizmente os resultados visíveis ainda são muito tímidos, como ficou explícito com a atual tragédia socioambiental do Rio Grande do Sul. O Plano Nacional sobre Mudança Climática (PNMC), idealizado pela primeira gestão de Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente, teve o grande mérito de instituir essa política no Brasil, elevando o tema à uma posição de destaque na agenda pública. O PNMC deixou claro a complexidade e a urgência do problema, estruturando a política por meio de uma governança multinível e multiatores.
Em outras palavras, o enfrentamento às mudanças climáticas e o cumprimento das metas brasileiras na Convenção-Quadro da ONU só seriam possíveis com a cooperação dos três níveis da federação, União, Estados e Municípios, bem como com a participação dos diversos setores da sociedade civil, de movimentos sociais, povos indígenas e comunidades tradicionais ao setor privado empresarial e à comunidade científica. Para isso, foram criados vários órgãos Colegiados com representações de diversos entes públicos e participações da sociedade civil para discutir e implementar os objetivos da política. Uma primeira avaliação feita em 2017 pelo Instituto Talanoa, em parceria com o Observatório do Clima, a Rede Advocacy Colaborativo e a Laclima, revelou fragilidades dessa estrutura, como o excesso de fragmentação e a falta de uma liderança executiva com a visão estratégica em torno de um projeto comum.
O caso mais recente dos efeitos das mudanças climáticas é a tragédia no Rio Grande do Sul, que já afetou 450 municípios do estado. Esse fato não é isolado, basta olhar para o histórico de acontecimentos nos últimos anos. Mas um assunto que esteve em evidência ao longo da semana foi o papel dos entes públicos. Existe, no âmbito da gestão pública brasileira, uma divisão clara sobre as responsabilidades de prevenção de desastres e de mitigação dos efeitos da mudança do clima, por exemplo?
HELENA S. SAMPAIO: Sim. Antes mesmo da nova Ordem Jurídica Constitucional de 1988 já ensaiávamos, na abertura política, pactos federativos para a implementação de políticas sociais por meio de sistemas únicos, em que os entes atuam em razão da competência, assim aprendemos com o sistema único de saúde. Temos nos aperfeiçoado legalmente. Temos o sistema de competências constitucional, leis complementares para quase todas as matérias que envolvem competências comuns dos entes federativos. Temos também nos profissionalizado nas rotinas e exigências administrativas, conseguimos uma gestão voltada para estratégias, planejamentos, essa é a escola da vez, capaz de agregar o "bom" das escolas administrativas. Mas ainda não conseguimos perpetrar tudo isso de forma concreta, contínua e eficiente.
DANIELLE H. RACHED: No caso da mitigação dos efeitos da mudança do clima a questão se coloca de outra maneira. Há o entendimento global de que o enfrentamento das mudanças climáticas, cada vez mais urgentes, se dá por meio da mitigação do problema, o que requer a redução drástica das emissões de carbono (até 1,5, no máximo 2 graus celsius acima dos níveis pré-industriais, conforme o Acordo de Paris) e por meio de medidas de adaptação, como a criação de cidades mais resilientes e sustentáveis. Essas medidas também dependem dos vários entes governamentais e dos demais atores da sociedade civil e do mercado, mas obviamente uma regulamentação forte e uma fiscalização efetiva são essenciais. Incentivos fiscais e indutores econômicos para a utilização de materiais e processos renováveis e recicláveis também são de grande valia.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: Como mencionado, o problema das mudanças climáticas, agora já tratado como uma emergência climática, é complexo e depende, necessariamente, da cooperação de todos os Poderes Públicos e setores da sociedade, seja atores do mercado ou da sociedade civil, bem como os próprios consumidores. A prevenção de desastres recebeu atenção específica em 2012, pela lei 12.608, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC e abrange as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil.
Em se tratando de uma questão complexa e intersetorial, a própria lei determina sua integração a diversas outras políticas como a de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável. A lei prevê competências específicas para cada ente da federação, por exemplo, cada à União a elaboração do Plano Nacional e aos Estados a elaboração do Plano Estadual, mas aos Municípios o mapeamento das áreas de risco de desastres, bem como a fiscalização das mesmas e a vedação de novas ocupações nessas áreas. Há também competências comuns aos três entes, como o estímulo a comportamentos de prevenção e a reorganização do setor produtivo e a reestruturação econômica das áreas atingidas por desastres.
Ainda se tratando do Rio Grande do Sul, uma das primeiras falas públicas do governador Eduardo Leite foi a de que esta não era "hora de procurar culpados". Isso foi replicado pelos veículos de imprensa e motivou polêmica nas redes sociais. A dúvida que fica é: o debate sobre desastres como esse deve mesmo ser despolitizado ou isento de culpabilização?
HELENA S. SAMPAIO: É uma pergunta de inúmeras argumentações, pois também de inúmeras respostas. Mas, pensando na racionalidade das soluções de problemas públicos, o debate sobre ele é necessário, remonta seu conhecimento e reconhecimento. Evita o negacionismo, situação que impede soluções, pois se não há problema, não haveria que solucioná-lo. Eticamente deve-se, num momento como esse de calamidade no Rio Grande do Sul, priorizar o que é mais urgente diante dos acontecimentos. Ter uma escala de prioridades por assim dizer.
Salvar vidas, prover serviços públicos essenciais, retomar a oferta de políticas sociais, retomar a econômica, por exemplo, não retira a avaliação necessária de cada fase, nas quais deve haver a análise e proposições de mudança imediata e mediata, que indicarão os responsáveis por concretizá-las, e que certamente passará, em razão de competência comum, por todos os entes federativos envolvidos em termos de gestão pública, sem dizer da coletividade que também está implicada nas soluções. A identificação de responsáveis por ações ou omissões anteriores que geraram o problema nem sempre coincide com a identificação dos responsáveis por solucioná-los, mas deve acontecer para educação preventiva de outros problemas e indenização pelo que houve, se for o caso.
DANIELLE H. RACHED: No Rio Grande do Sul, a legislação estadual de proteção socioambiental foi desmontada de 2019 para cá, no mesmo sentido do desmonte e enfraquecimento promovido pelo governo federal. Sem uma regulamentação forte de proteção socioambiental, que respeite os princípios básicos da prevenção e da precaução, acordados na Rio 92, o interesse econômico do curto prazo prevalecerá e os efeitos serão desastrosos. Todos os entes políticos tem responsabilidade, já que dispõem de instrumentos a seu alcance para promover tanto a mitigação quanto a adaptação. Destaca-se, porém, o papel desastroso do Congresso Nacional na temática, já que o mesmo tem legislado sistematicamente para a fragilização das leis ambientais, em favor de um agronegócio descomprometido com a questão socioambiental.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: Não existe política fora da política. As mudanças e, principalmente a emergência climática que vivemos hoje é um fenômeno político, no sentido de que são resultado das opções sociais e econômicas das sociedades. A consciência sobre o efeito humano na alteração do clima e na perda de biodiversidade nasce nos anos 1970 com a Convenção de Estocolmo e em 1992 é consagrada na Rio 92 com a criação de três Convenções (Clima, Biodiversidade e Desertificação), além da Agenda 21, um programa de implementação em nível local dos princípios das convenções.
Ao longo desses 30 anos, uma grande quantidade de estudos, reuniões, acordos e previsões tem sido feitas, com destaque para o trabalho heroico de ONGs ambientalistas, defensores de direitos humanos, movimentos de povos indígenas e comunidades tradicionais, mais recentemente com forte participação e liderança de mulheres. Grandes lideranças foram assassinadas como Chico Mendes, Dorothy Stang, Dom e Bruno, por defenderem questões socioambientais, que no Brasil sempre estiveram ligadas ao uso da terra. A impunidade e a conivência do Estado com crimes dessa natureza agravam sobremaneira o problema.
Desde o início do Governo Lula tem se promovido uma agenda voltada para projetos de descarbonização e para a aceleração da transição energética, assim como tem investido em políticas de preservação da biodiversidade brasileira. Essas ações visam um aumento da influência global, mas também uma lógica econômica. O que há de correto ou até mesmo concreto nesse entendimento do Governo Federal?
HELENA S. SAMPAIO: Diria que os adjetivos "correto" e "concreto" da pergunta podem não compor na resposta, pois passar pela transição energética, pela transição digital e pela transição social é um caminho sem volta. Rotas, itinerários e atalhos neste caminho estão sendo usados e criados. Enquanto isso, a gestão pública brasileira carece de cadência. O aspecto temporal do mandato do Executivo é um deles, por assim exemplificar, já que a pergunta trata de governo. Sou da corrente que afirma que os mandatos deveriam ser mais longos como outrora, de 5 anos, ou mesmo de 6 anos para que numa mesma gestão se pudesse cuidar de todo o ciclo, pelo menos o inicial, das políticas públicas.
Atualmente, por circunstâncias fiscais, já se passa o primeiro ano do mandato com o planejamento anterior, daí no segundo ano se organiza o novo planejamento, quando os programas estão sendo implementados já é tempo de pensar em reeleição ou preparar a indicação de candidato sequencial, então o planejamento que é para ser plurianual passa a ser concretizado num pífio biênio, que mais parece de cunho eleitoral. Difícil concretizar políticas públicas socioambientais em dois anos.
A existência de planejamentos a longo prazo tem suavizado a quebra temporal comentada, mas é muito fluida a depender do entendimento de cada gestão. E isso sem contar que o tempo dos planejamentos plurianuais não coincidem em todas as esferas de governo. Os municípios, que são os mais envolvidos no sistema de repartição de receita, pois que participam na arrecadação de impostos estaduais e federais, têm eleições que diferenciam em dois anos. Tinha que ser um super sistema federativo de competências e responsabilidades para equacionar tudo isso. Nós não o temos.
DANIELLE H. RACHED: Há tensões claras dentro do próprio governo que apontam para dúvidas ou hesitações diante da priorização da agenda socioambiental, como o projeto de exploração de petróleo na foz do Amazonas, conforme defendido pelo Ministro das Minas e Energia, a falta de resiliência do PAC, a falta de melhores salários para os servidores do IBAMA, cuja fiscalização é essencial.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: O governo federal assinalou corretamente a questão socioambiental como prioridade do seu governo desde a campanha em 2022, tanto em termos de política externa quanto nas ações domésticas. Este primeiro ano e meio de governo tem sido marcado pela reconstrução do desmonte realizado pelo governo anterior, que claramente atacava a questão ambiental negando o problema e criminalizando seus defensores. Nesse início de reconstrução já há resultados significativos como a redução do desmatamento da Amazônia e a recepção da COP30 em Belém no próximo ano. No âmbito do G20, sediado em 2024 no Brasil, foi criada uma Força-tarefa para a Mobilização contra a Mudança do Clima, tornando o tema presente transversalmente nos painéis do G20. Podemos também mencionar a resposta rápida e interministerial à tragédia do Rio Grande do Sul.
Ao mesmo tempo que vemos uma atuação em prol de uma agenda positiva no campo do Meio Ambiente, há uma postura governamental criticada por movimentos ambientalistas e povos tradicionais que visa a implantação de projetos com grande impacto ambiental: a exploração de petróleo na margem equatorial e a construção de usinas hidrelétricas. Qual o diálogo que essas duas noções díspares tem no pensamento dos agentes públicos brasileiros? No que ele realmente se fundamenta?
HELENA S. SAMPAIO: Não há unicidade no pensamento dos agentes públicos brasileiros que pudesse informar qual diálogo existe. A princípio isso é bom no sentido de ser plural, democrático. O problema é que as noções, díspares ou coexistentes em direitos, serão determinadas não pelos agentes públicos, mas pela subserviência brasileira ao mercado global. Ainda não conseguimos dizer "fora banqueiros", por exemplo, e gastamos em média um terço do nosso orçamento anual para pagar juros de dívida aos que investem tanto na exploração do petróleo quanto na implantação de unidades de conservação. É dizer, investem em que dá "lucro", quando somos nós os que deveríamos dizer onde investir. E assim deveríamos reconhecer que precisamos de uma base social forte, em todos os sentidos, capaz de dar a noção que deve ser levada ao pensamento do agente público.
DANIELLE H. RACHED: Trata-se da necessidade urgente da mudança da matriz energética, o que tem um custo econômico e efeitos de médio e longo prazo. Mas é um preço que precisa ser pago sob pena de não haver mais cidades para consumir a energia. A ciência e a tecnologia apontam caminhos possíveis, como as energias solar e eólica e o hidrogênio verde. É preciso estratégia e mecanismos econômicos de indução para a transição energética. No entanto, é preciso que todo projeto de infraestrutura contemple as comunidades que moram nas regiões, seja do ponto de vista da escuta, seja do impacto.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: O que estamos vivendo nesse momento é a evidência cada vez mais forte de uma situação de emergência climática. É imprescindível que esse fator seja levado em conta em projetos anacrônicos e que jogam contra os efeitos de mitigação da crise climática como a exploração de petróleo em qualquer local, sobretudo na Amazônia, e a construção de novas usinas hidrelétricas. Ambas formas de geração de energia fazem parte de um passado que não permite mais nenhum futuro e pelo jeito já nenhum presente.
No histórico de execução de políticas públicas no Brasil a gente vê que há uma tendência pela descontinuidade - com ciclos de investimento e desinvestimento, de criação de projetos e encerramento de outros, de fundação e extinção de órgãos. É assim na Cultura, na Educação e até mesmo na Saúde. Como isso se dá no âmbito do Meio Ambiente?
HELENA S. SAMPAIO: Não entendo que seja uma tendência pela descontinuidade, acredito que o próprio sistema, como já mencionei sobre a carência de cadência na gestão pública, é descontínuo. O sistema está ou para dar muito trabalho aos órgãos de controle interno, externo e social ou para instituir um sentimento de medo no gestor. Ou ainda as duas coisas, o que é pior. Pois sendo assim, há hipertrofia de poder nos órgãos de controle e acanhamento na gestão pública. Precisamos de acompanhamento dos órgãos de controle e ousadia na gestão pública, pois nossos problemas são complexos, variáveis, multidisciplinares e com inúmeros atores sociais.
As políticas públicas ambientais fazem parte da mesma ordem social das demais citadas, padecem igual no sistema e podem variar em razão de contextos, assim como as demais. É dizer, endogenamente, que não nos resolvemos nas prioridades, estamos na correnteza dos países desenvolvidos. Dizemos constitucionalmente que nossa prioridade é a educação, mas não conseguimos eficácia nas escolhas de programas que mereçam a educação cultural, a educação em saúde, a educação ambiental. Fica cada setor isolado, esperando um índice internacional que chame atenção, ou um financiamento estrangeiro que exija uma atividade específica. Não somos donos das nossas prioridades.
DANIELLE H. RACHED: Os avisos da ciência e dos ambientalistas soavam como alarmistas e distantes da realidade. Infelizmente a conta chegou e não estamos preparados para o tamanho do desafio, de modo que o custo será bem mais alto, seja em vidas perdidas, seja em prejuízos econômicos.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: As políticas públicas estruturais devem ser políticas de Estado de modo a não serem tão vulneráveis às mudanças conjunturais de governo. Por isso que a Constituição Federal estabelece os princípios gerais de políticas sociais de fundo, como saúde e educação, que ganharam sólidas legislações infraconstitucionais formando sistemas nacionais de peso, como o Sistema Único de Saúde e o Sistema Nacional de Educação. A questão socioambiental não obteve historicamente o mesmo destaque no lugar das políticas público, nem de estado, nem governamentais.
No próximo ano o Brasil vai sediar a COP30, que acontecerá em Belém (PA), quando lideranças mundiais estarão no país para discutir soluções e formalizar compromissos comuns em torno das Mudanças Climáticas. Que relevância esse evento terá para a condução das políticas públicas e para a pauta no âmbito local?
HELENA S. SAMPAIO: Total relevância, assim como já tivemos sediando eventos da mesma magnitude em outros municípios. Sou municipalista. Assim costumo dizer que não há nada que aconteça que não tenha implicância no âmbito local. É uma oportunidade para realçar a pauta ambiental numa capital do Norte, que segundo o censo de 2022 (IBGE 2023), menos de 30% dos habitantes têm acesso à rede de esgoto (um dos pilares do saneamento ambiental). No Brasil, isso sim é contínuo, avançamos muito muito muito em várias vertentes de proteção ambiental e tecnológica (como que para sediar eventos de magnitude global), mas não conseguimos cuidar do básico e fundamental: dignidade da pessoa humana, dentro da qual está seu direito e dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
DANIELLE H. RACHED: Na qualidade de anfitrião do evento, o Brasil terá uma ótima oportunidade de mostrar ao mundo que cumpriu bem seu dever de casa, reduzindo as emissões e criando legislações e estratégias de adaptação. A reconstrução do Rio Grande do Sul em moldes resilientes e a adaptação dos outros 2 mil municípios vulneráveis a eventos climáticos extremos pode ser um excelente cartão de visitas. É preciso, no entanto, que as ações levem em consideração a justiça climática, priorizando grupos mais vulnerabilizados.
DENISE CRISTINA VITALE R. MENDES: A COP 30 será um momento-chave para os países efetivamente se comprometerem com a priorização da agenda socioambiental em seus governos, nos diversos níveis. Ela marcará dez anos do Acordo de Paris, onde foram estabelecidas as metas de elevação da temperatura, que já foram descumpridas. O ano de 2023 foi registrado como o ano mais quente da história nos últimos 100 mil anos, tendo a temperatura da Terra permanecido a 1,48°C acima do nível pré-industrial de 1850 a 1900. O dado é quase o teto para o aumento da temperatura de até 1,5ºC, estabelecido no Acordo de Paris como “limite seguro” para uma transição menos dramática, previsto inicialmente apenas para 2030. Com sete anos de antecedência, o limite chegou.
Trata-se de um resultado inédito, que insere definitivamente a questão climática não mais como uma mudança paulatina e sob controle, mas como uma emergência que deve ser imediatamente enfrentada. Não à toa, o Secretário-Executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, Simon Stiell, declarou, em um discurso no dia 10 de abril, em Londres, que “os próximos dois anos são essenciais para salvar nosso planeta”. É nesse contexto dramático que o Brasil hospedará a COP 30, em Belém do Pará, cidade amazônica belíssima, mas com graves problemas sociais e ambientais, como o grande déficit de saneamento básico. Para além de questões antigas não resolvidas, será preciso novas ações de mitigação e adaptação climáticas.
Quais são as prerrogativas e qual tem sido o trabalho do Legislativo para com essa temática?
HELENA S. SAMPAIO: Se for no plano macro, conseguimos internalizar um compromisso assumido em âmbito internacional, como a política da biodiversidade, a política sobre mudança do clima, mas não conseguimos, por exemplo, legislar sobre a política nacional de economia solidária, está sendo discutida no Congresso Nacional desde 2012 (PL 4685), que poderia ser capaz de reunir os pressupostos da ordem social à implementação da ordem econômica que o Brasil precisa.