É nas ruas que a escalada da extrema pobreza tem revelado os desafios de toda gestão pública. Em meio aos pedidos de ajuda nos semáforos, não é difícil notar famílias inteiras ocupando praças, parques, calçadas e viadutos – dormindo no chão ou em colchões improvisados com papelão ou restos de espuma.
Divididos entre o "trabalho" de pedir, crianças que vivem em situação de rua praticamente passam despercebidas por aqueles que não querem ter o sossego interrompido por um pedido de ajuda.
Em meio a esse cenário, a infância ainda está ali. Em paralelo ao fluxo dos carros, por exemplo, é possível enxergar nas mãos de Denis (fictício) algumas cartas do Naruto e da Copa do Mundo de futebol, com as quais brinca quando não está pedindo ajuda. Com Luana (fictício), a sua boneca barbie "velha" e "arrupiada".
Se perguntar qual é o personagem favorito do Naruto, talvez descubra que é o "Gaara", porque ele "invoca a areia". É o que me explica o pequeno Denis, de apenas 8 anos, que mora nas ruas com seu irmão de 10 anos e sua tia, a qual chama de mãe.
Já a pequena Luana, de 2 anos, diz, com as palavras ainda enroladas de quem está aprendendo a falar, que gosta de boneca enquanto brinca com uma. A mãe de Luana, Maria de Fátima (fictício), explica que ela e a filha só estão ali até conseguir juntar o dinheiro do aluguel e voltar para o kitnet que moravam, que custa R$ 300.
Segundo a Prefeitura de Fortaleza, são 64 crianças como essas que sobrevivem pelas ruas da Capital. Os dados são de inocentes de 0 a 11 anos, de acordo com o Censo da População em Situação de Rua de Fortaleza 2021, elaborado pelo município. Para especialistas, o número pode ser ainda maior.
Em todo o Estado, apenas Fortaleza realiza Censo dessa população – apontando uma estimativa de quantas pessoas vivem nas ruas da Cidade. Diante dessa realidade, o Diário do Nordeste foi ouvir das próprias crianças o que elas querem e esperam do novo Governo eleito do Estado, ainda que a problemática caiba a todos os entes – Município, Estado e União.
A reportagem também retirou propostas do plano de Governo de Elmano de Freitas (PT) que tratem sobre o tema, para mostrar qual o plano de enfrentamento. No documento, o petista não cita diretamente crianças em situação de rua, mas não deixa de contemplá-las ao falar de "pessoas em situação de rua", "crianças e adolescente em situação de vulnerabilidade social" e "todos".
Dentre as medidas que buscam mudar esse cenário, para as crianças e suas famílias, estão o fortalecimento do Programa Mais Infância; apoio aos municípios na implementação de programas especiais para pessoas em situação de rua; ampliação de serviços de prevenção e atendimento médico para as crianças e adolescentes vítimas de negligência ou violência; e acesso à moradia digna.
Apesar de não entenderem bem que políticas são essas, o que as crianças desejam, na prática, é que as ações cheguem até elas e mudem uma dolorosa realidade.
Desejos mútuos
Brincando com sua boneca na Praça da Bandeira, o desejo da pequena Luana, de 2 anos, é igual ao de qualquer outra criança: brinquedo e comida. A diferença, no entanto, se revela na simplicidade dos pedidos.
Repórter — O que você pediria ao novo Governo do Ceará, se pudesse?
Luana — Binquedo.
Repórter — E para a tua mãe?
Luana — Boneca também. As comprinhas também. — Nesse momento, a mãe olha para a criança fazendo um gesto de quem pede comida.
Repórter — O que você gosta de comer?
Luana — Macarrão e peixe. — Sorri, como quem lembra o gosto da refeição.
A mãe, Maria de Fátima, explica que só tem ela de filha e faz o que pode. Nas ruas, estão porque o dinheiro do aluguel está atrasado e não podem mais ficar no kitnet. Ainda que receba o Auxílio Brasil, ela explica que o valor não é suficiente para botar comida na mesa e pagar as contas.
"Ela me aperreia por comida, por leite, café com leite, e eu não tenho de onde tirar. Tenho que trabalhar na carrocinha (de reciclagem). Eu passo o dia todinho e a noite (nas ruas). Se eu tivesse dinheiro (para pagar o aluguel), eu ia para casa era hoje", declara.
"Casa"
No cruzamento das avenidas Tristão Gonçalves com Duque de Caxias, é onde o Denis, de 8 anos, e o irmão, Alef (fictício), de 10 anos, passam o dia "trabalhando" nos semáforos. Juntos da tia Zanete (fictício), de 61 anos, tentam sobreviver. É ela quem cuida deles desde que a mãe biológica dos meninos foi embora, quando eles ainda eram bebês, conforme relata. Assim, Zanete é chamada pelos dois de mãe.
Repórter — O que você pediria ao novo Governo do Ceará, se pudesse?
Alef — Abaixar o preço das coisas para ajuda a minha mãe e a minha família. Ele podia dar uma casa para a minha mãe. Melhorar (índices de) crimes, assassinatos.
Repórter — Vocês não têm casa?
Alef — Não.
Repórter — E como é para vocês?
Alef — A gente ganha as coisas. Pede e as pessoas dão.
Repórter — E você não está indo para a escola?
Alef — Não, porque não tem condição.
Enquanto Alef respondia as perguntas com timidez, Denis aproveitava para tirar as cartas do Naruto e ficar brincando enquanto esperava.
Quando foi questionado sobre o que pediria ao novo Governo, demorou a responder enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Só uma palavra foi capaz de sair, como se estivesse engasgada e fosse colocada para fora: "casa", disse o pequeno Denis.
Dona Zanete explica que os meninos já tiveram casa, mas saíram ainda cedo para morar nas ruas, junto a ela, após conflitos familiares. O pai de um foi assassinado, explica ao se referir a fala de Alef. Já o do outro foi preso, "mas não foi atrás" do menino desde que foi solto, relata.
"Pra não passar necessidade"
Na Praça do Ferreira, Bianca (fictício), de 8 anos, brinca nos bancos da Praça após ter "trabalhado" o dia todo - palavra que usa para se referir ao pedido de ajuda nas ruas. Diferente das outras crianças, Bianca tem um teto para ir à noite. Ela e a mãe estão há pouco tempo na cidade, cerca de 2 semanas. Chegaram de Brasília com uma promessa de emprego, mas se tratava de um golpe, como explica a mãe, Carol (fictício).
Repórter — O que você pediria ao novo Governo do Ceará, se pudesse?
Bianca — Eu pediria brinquedo para as crianças, roupas, sapatos, comida, casa, pediria para não passar necessidade. O Governo é uma coisa especial para a gente, ele veio para ajudar todos nós.
Repórter — E por que vocês estão aqui na Praça hoje?
Bianca — A gente fica aqui esperando a quentinha, por que lá dentro (da pousada) não tem. Então, a gente vem para cá.
Repórter — E você pede ajuda as pessoas? Elas te ajudam?
Bianca — Peço. Um dia eu tava sentada com a minha mãe no chão, dormindo, aí uma mulher foi lá e me deu um pão e uma pipoca. Eu já ia pedir para ela, mas ela sabia que eu tava passando aquela necessidade. Aí foi lá e me deu.
Carol, a mãe, explica que teve o celular roubado quando chegou a Fortaleza. Desde então, dorme a noite com a filha em uma pousada simples, cuja a diária custa R$ 25. Durante o dia, fica nas ruas com a filha para arrecadar comida e o dinheiro da pousada. Além disso, Carol explica que ela e a filha estão aguardando receber uma passagem social para voltar para Brasília. Sem ajuda de familiares, só resta esperar e ir "se virando".
"Lá (em Brasília), eu tenho só meus primos. Minha mãe mora no Piauí. Aí por enquanto eu estou aqui. Eu pedi uma passagem social, só que eu estou esperando. É demorado", acrescenta.
"Que nada mais faltasse para ninguém"
Irmãs do meio de quatro filhos, as pequenas Lorena (fictício), de 7 anos, e Betina (fictício), de 10 anos, foram parar nas ruas com a família depois que precisaram deixar a casa, em um bairro da periferia de Fortaleza, para "evitar confusão".
Repórter — O que vocês pediriam ao novo Governo do Ceará, se pudessem?
Lorena — A casa da Barbie, uma casinha e uma bicicleta.
Betina — Uma casinha com móveis, com comida. Que nada mais faltasse para ninguém.
Repórter — Para ti e para os teus irmãos?
Betina — Para ninguém aqui. — Responde olhando para as pessoas da rua.
A confusão que pretendiam evitar ao sair de casa eram desentendimentos com membros de facção, como explica o pai das meninas, Charlisson (fictício), de 35 anos. Ele revela que não chegou a ser expulso, mas saiu com os filhos antes que o cenário acabasse em tragédia.
"A gente saiu porque essa daqui (Betina) defendeu a mais nova numa confusão lá, aí eles reclamaram. Eu reclamei. E manda quem pode, obedece quem tem juízo. Saímos para não correr riscos", explica, ao relatar que ele, a esposa e os quatro filhos vivem nas ruas há sete meses e não podem retornar ao local que residiam antes.
No entanto, o pai logo pondera e fala que, apesar do contexto atual, todos os filhos estão na escola.
"Eles estudam, passam o dia no colégio. De noite, a gente vem para cá para pegar os 'estouros'. E a gente vai levando enquanto Deus abençoa e o aluguel social num sai", acrescenta.
"Estouros" é como chamam as alimentações distribuídas por voluntários ou pelo Poder Público em horários de pico. Assim, todo dia na Praça do Ferreira, há distribuições de sopas a partir das 18h.
Desafios
Antropólogo e militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), Messias Douglas reconhece que os desafios são muitos e não dependem apenas de um ente.
No entanto, ele acredita que o Poder Estadual pode tomar a frente e acompanhar a execução das políticas públicas, instalando, por exemplo, uma coordenadoria específica e um Observatório para tomar as decisões em conjunto com outros entes, com representantes da sociedade civil, da Defensoria Pública, universidades e outros órgãos que possam contribuir com o tema.
"Deveria ter uma coordenadoria específica que auxilie os municípios na execução dessas políticas. Às vezes, o que existe são ações que têm um começo e meio, e volta para o começo. Não têm um fim. E acaba que isso frusta as famílias, isso faz com que as famílias continuem nas ruas. Se existisse uma coordenação específica para ajudar os municípios na execução dessas políticas, evitava. Há um grupo aqui que é de fora de Fortaleza, que vem de outras cidades, não é um problema só da Capital", ressalta.
Para a coordenadora colegiada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), Marina Araújo, é necessário fortalecer políticas de assistência e proteção social voltadas, principalmente, às famílias com crianças para que nenhuma delas precise recorrer às ruas por conta de sua vulnerabilidade social.
Diante disso, ela cita a necessidade no reforço de investimentos em Saúde, Educação, Lazer, Cultura, Esporte, entre outros.
"Na Constituição e no ECA, há um princípio e regra que é a prioridade absoluta de criança e adolescente. As políticas públicas voltadas para esse público devem ter prioridade, devem ter a garantia de recursos públicos destinados"
Messias Douglas acrescenta, também, que além de proporcionar moradia para essas pessoas, é necessário acompanhá-las para que elas não voltem às ruas, dando chances de sobreviverem também dentro de uma casa.
"Às vezes, as pessoas em situação de rua conseguem o aluguel social, uma casa, mas não têm emprego e ficam suscetíveis a todo tipo de violência, precisam de comida. Ninguém vai comer parede. (...) Então, é focar nesses projetos de transferência de renda de forma mais inteligente, a partir de estudos, e que evite que essas comunidades venham para a situação de rua. A gente só vai conseguir diminuir as pessoas em situação de rua quando a gente conseguir estancar esse sangramento nas comunidades da extrema pobreza"