Carnaval 2024 já mobiliza pelo menos R$ 15 milhões em prefeituras no Ceará

Festas atraem milhares de foliões e movimentam a economia no Litoral e no Interior, por outro lado, órgãos de fiscalização estão atentos para identificar uso político dos eventos em ano eleitoral

As festas de Carnaval — antes restritas a pequenos blocos locais ou, às vezes, nem a isso — têm se tornado cada vez mais tradicionais no Ceará. Prova disso são os investimentos milionários e em constante crescimento feitos por gestores públicos municipais para promover as atrações. Os eventos, com artistas de cachês que superam a marca de R$ 500 mil, movimentam a economia de cidades do Interior e do Litoral. Neste ano, as prefeituras cearenses já investiram pelo menos R$ 15,1 milhões em artistas e bandas para o ciclo carnavalesco.

A nove meses das eleições, no entanto, as festas ganham novos olhares. De um lado, os eventos podem garantir mais popularidade e melhorar a imagem de prefeitos em busca da reeleição ou de eleger um sucessor, por outro lado, órgãos de fiscalização ficam atentos em busca de possíveis irregularidades ou uso dos shows com finalidade eleitoral.

O Governo do Ceará, inclusive, sinalizou que os municípios terão de arcar sozinho com tais investimentos. No último dia 12 de janeiro, o governador Elmano de Freitas (PT) vetou despesas públicas com eventos relacionados ao Carnaval. Na determinação, o petista considera a necessidade de se priorizar os gastos públicos em áreas que "atendimento emergencial e que impactam mais fortemente a qualidade de vida da população cearense". 

De fato, a contratação dos artistas têm ficado por conta dos gestores municipais. Conforme o levantamento feito pelo Diário do Nordeste, a partir de documentos remetidos pelas prefeituras ao Tribunal de Contas do Ceará (TCE), 17 municípios cearenses já confirmaram atrações para este ano usando recursos públicos. Eles contrataram, até agora quase 70 atrações, totalizando R$ 15,1 milhões.

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A quase duas semanas do Carnaval, o número já se aproxima do montante investido no ano passado, o primeiro em que as festividades foram autorizadas desde 2020, após o início da pandemia da Covid-19. Em 2023, 32 prefeituras investiram R$ 20,2 milhões em atrações para o Carnaval.

Para os levantamentos, a reportagem considerou contratos feitos por inexigibilidade de licitação em todos os 184 municípios do Estado, até o último dia 26 de janeiro. Os dados foram coletados do Portal das Licitações, do TCE.  

A inexigibilidade de licitação é um procedimento adotado para quando não é possível haver concorrência licitatória e a intenção do ente público é contratar serviços que são realizados de forma singular, apenas por uma pessoa ou empresa. Essa modalidade é prevista na Lei Federal nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos). 

De acordo com Carlos Nascimento, secretário de Controle Externo do TCE, as Prefeituras podem realizar as contratações tanto por licitação quanto por inexigibilidade. Contudo, a ampla maioria das atrações de Carnaval é firmada por meio da segunda modalidade.

“O ideal é que os procedimentos permitam a competitividade das pessoas que poderiam prestar o serviço. É claro que, se o município optar por trazer alguém que preenche os requisitos da inexigibilidade, ele terá que demonstrar, fundamentar a razão usando um dos incisos que permite a inexigibilidade da contratação, há que se demonstrar que o artista que está sendo contratado preenche aqueles requisitos de que poderia ser contratado sem uma competição”, afirma.

Nos contratos, as prefeituras justificaram que tais eventos são tradicionais nos municípios e atraem multidões justamente pela relevância dos artistas contratados. Os eventos, apontam as gestões municipais, movimentam a economia local, fomentam empregos, aumentam o fluxo na rede hoteleira e gastronômica.  

Nos documentos publicados no Portal do TCE, os municípios listam ainda notas fiscais de outros shows realizados pelos artistas e pelas bandas para o setor privado. A medida é uma forma de justificar os valores cobrados e comprovar que não há superfaturamento. Os contratos indicam ainda a origem dos recursos usados para financiar os shows, normalmente vinculados às secretarias de Turismo e Cultura. 

Festas tradicionais

No Ceará, além da Capital, que passou a investir nas festas de rua nos últimos anos, municípios como Paracuru, Aracati, Aquiraz e São Benedito atraem multidões nesta época do ano. Com os visitantes, há também uma injeção de recursos nas economias desses locais.

Um dos carnavais mais tradicionais do Ceará ocorre em Aracati, na Região Metropolitana de Fortaleza. A festa do município, inclusive, já foi reconhecida como uma manifestação da cultura nacional.

A folia se espalha em diversos pontos da cidade, como as praias de Majorlândia e Canoa Quebrada, a Rua Coronel Pompeu e a Rua Coronel Alexanzito. Nos últimos dois anos, a cidade foi a que mais investiu em atrações para o Carnaval no Ceará. 

Somado nos dois anos, o montante já supera R$ 5 milhões para atrações que incluem Matheus Fernandes, Zé Cantor, Avine Vinny e Xand Avião. Em 2023, o município contou com shows de É O Tchan, Nattan, Mari Fernandez, Bell Marques e Pabllo Vittar.

De acordo com Fátima do Carmo, secretária de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda de Aracati, os investimentos feitos pela prefeitura representam apenas uma pequena fatia do montante injetado na cidade por turistas e foliões.

“O Carnaval é nossa principal festa do ano e também a que atrai maior número de turistas e visitantes. A prefeitura investe, há pelo menos sete anos, em infraestrutura, seja via malha viária, saneamento, segurança e preocupação com o meio ambiente e a limpeza da cidade”.
Fátima do Carmo
Secretária de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda de Aracati

A festa na Cidade, além dos investimentos públicos, conta também com recursos de patrocinadores, que neste ano garantiram a contratação dos cantores Gusttavo Lima, no Pré-Carnaval, e Ivete Sangalo, no Carnaval.

Conforme Fátima do Carmo, a Prefeitura de Aracati estimou a passagem diária de aproximadamente 300 mil foliões no ano passado. À época, conforme a gestão municipal, foram injetados mais de R$ 200 milhões em diversas atividades, como comércio, transporte, alimentação, hospedagem etc.

Retorno para a cidade

O Município reforça ainda que, na arena do Carnaval, mais de mil postos de trabalho de vendedores ambulantes são gerados durante os cinco dias.

“Além disso, há uma grande movimentação na cidade com vendas e outros trabalhos indiretos com geração de renda. As pousadas e hotéis devem ter ocupação máxima. Só de transporte alternativo, o Demutran cadastrará cerca de 200 vans. Apenas entre as atrações artísticas locais, são mais de 25 bandas, DJ, apresentações etc, cada qual com uma equipe entre 10 a 15 pessoas, o que perfaz mais de 250 pessoas trabalhando e ganhando”, acrescenta Fátima.

“Fora a produção, que somente para os trios elétricos são mais de 200 pessoas trabalhando diretamente no carnaval. Além disso, ganham as lojas, os cabeleireiros, oficinas mecânicas, supermercados,  pousadas, casas alugadas, enfim, a cidade se movimenta, gerando trabalho em renda”, conclui.

Na última quinta-feira (25), o prefeito de Granja, Anibal Filho (PDT), cancelou o show do cantor Zé Felipe na programação de Carnaval do município. Segundo o mandatário, a atração será substituída pelo grupo Ara Ketu. Segundo ele, a decisão veio após a descoberta de que Zé Felipe havia marcado outro show em um município diferente, na mesma data, mas por um valor menor do que o cobrado em Granja.

"A Prefeitura havia celebrado um contrato já há alguns dias, e ontem descobrimos que foi celebrado também (um outro contrato) com o município de Viçosa, mas por um valor menor. Achamos que isso não foi correto. Por isso, a Prefeitura de Granja solicitou o cancelamento", disse o prefeito em um vídeo nas redes.

O caso em Granja, no entanto, é exceção. Para o Carnaval 2024, estão mantidas as festas — e os investimentos públicos municipais — em Aquiraz, Crateús, Beberibe, Acaraú, Baturité e Granja, entre outras cidades no Estado. Nas redes sociais, os anúncios desses eventos nas páginas oficiais das prefeituras e das secretarias atraem milhares de mensagens de apoio e comemoração da população.

Apesar do engajamento nas redes gerado por esses eventos, o consultor político e especialista em marketing eleitoral Leurinbergue Lima aponta que os investimentos em atrações para o Carnaval podem se virar contra os gestores.

“O impacto positivo de um show é muito relativo do ponto de vista eleitoral, porque com duas ou três semanas o eleitor nem se lembra da festa. O que impacta, de fato, é o eleitor ver uma obra sendo concluída ou um buraco na rua que ele cai todo dia, mas uma festa é muito relativa. Claro, tem municípios que têm tradição, uma vocação, então isso agrega, caso o município tenha condições de bancar e não atrapalhe outras áreas”, aponta.

“Mas tem um outro problema, porque, às vezes, a turma não sabe fazer a festa sem ficar se promovendo, pedindo alô ao canto, pedindo voto, isso acaba gerando uma dor de cabeça maior”
Leurinbergue Lima
Consultor político e especialista em marketing eleitoral

Festa e fiscalização

É justamente de olho nesses agentes públicos que tentam se aproveitar dos eventos que os responsáveis por fiscalizar como os recursos dos municípios são aplicados prometem uma ofensiva para prevenir desvios e punir ilegalidades. O que deixa o sinal de alerta ainda mais aceso para o Carnaval deste ano é justamente a proximidade eleitoral.

Um desses reforços será do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel), do Ministério Público do Ceará (MPCE). O grupo, sob coordenação do promotor de Justiça Emmanuel Girão, atua na esfera eleitoral para prevenir crimes.

De acordo com o promotor, o MPCE irá enviar, até o Carnaval, duas minutas de recomendações para os promotores. Eles irão instaurar procedimentos administrativos para expedir recomendações a prefeitos, vereadores e agentes públicos.

“Nosso foco são dois ilícitos durante essas festas. O primeiro é a propaganda eleitoral antecipada, quando os gestores aproveitam o evento para antecipar que é candidato ou até pedir voto. Se isso ocorrer, ele será multado”, aponta. 

“O segundo envolve a magnitude desses atos, que podem ser algo mais grave, caso o evento tenha grandes proporções e caso seja explorada a imagem do gestor e da candidatura dele, o que pode ser caracterizado como conduta vedada pela Lei das Eleições. Neste caso, a pena é a cassação do registro e do diploma. Também pode ensejar uma ação de abuso do poder político”
Emmanuel Girão
Coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel), do Ministério Público do Ceará (MPCE)

Ainda conforme o promotor, os responsáveis pelas atrações artísticas contratadas para esses eventos também devem receber recomendações do MPCE. “Para que os artistas, durante os eventos, não fiquem elogiando, mandando abraço, agradecendo ao prefeito durante os eventos, porque isso também pode caracterizar crime eleitoral”, afirma.

Emmanuel Girão pondera que a realização dessas festas, e mesmo a presença dos agentes públicos, não ferem a legislação brasileira. 

“O que não pode é usar o evento para a promoção da imagem, sugerir que é candidato, que está fazendo aquilo pensando em eleição, por exemplo”, diz. 

Gastos Públicos

Mais focado nos gastos públicos, o Tribunal de Contas do Ceará também mantém os olhos atentos a esses eventos.

Carlos Nascimento reconhece que em ano eleitoral a preocupação com condutas ilegais é maior e há uma atenção redobrada. 

“É sabido que, às vezes, há pelo menos a intenção de alguns políticos de utilizar recursos públicos para uso indevido da máquina pública durante a eleição, para que ele ganhe força e garanta a sua reeleição. O que o Tribunal pensa em relação a isso é que os critérios que já são utilizados nas fiscalizações permanecem mantidos quanto às irregularidades que podem estar acontecendo ali na prestação de serviço, então (é aplicar) critérios objetivos que procurem entender se há um comportamento anormal das despesas públicas durante o ano inteiro e inclusive próximo à eleição”,
Carlos Nascimento
Secretário de Controle Externo do TCE

“Procuramos visualizar se pode haver algum tipo de direcionamento ou falta de pressupostos para a competitividade nesses procedimentos. Ficamos de olho independente de ser um evento de grande ou pequeno porte, verificamos, na verdade, se o município vai respeitar as regras das licitações. É claro que aqueles que têm a maior materialidade nos chamam maior atenção por conta do impacto que podem causar de prejuízo nos cofres públicos”, completa o secretário de Controle Externo.

ENTENDA O PAPEL DO TCE: 

De acordo com Carlos Nascimento, dois momentos pedem por uma fiscalização minuciosa do órgão. O primeiro é a própria contratação. “É o momento em que, se houver algum prefeito ou um secretário mal intencionado, é possível direcionar a licitação”, aponta.

“O outro momento é a execução do serviço. Muitas vezes a contratação até segue um rito que prevalece dentro da legalidade, aparentemente está tudo ok, no entanto, durante a execução não se concretiza todo o serviço ao qual estava ali combinado ou contratado. E é um momento em que infelizmente a população pode ficar com um serviço de menor qualidade ou de menor quantidade do que tenha sido efetivamente contratado e pago”, conclui.