A nomeação do presidente da Fundação Palmares, o contrato de trabalho Verde e Amarelo, a liberação de novos agrotóxicos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e a fiscalização por videomonitoramento são temas de abrangência nacional, mas que tiveram aplicações questionadas no Judiciário cearense e acabaram por ter também definições com repercussão nacional no ano passado.
A última decisão desse tipo foi a suspensão, por parte da Justiça Federal do Ceará, da nomeação do jornalista Sérgio Nascimento de Camargo para a presidência da Fundação Cultural Palmares. Reações à nomeação ocorreram devido a uma série de publicações, nas redes sociais, em que o jornalista relativiza temas como a escravidão e o racismo no Brasil.
Na decisão, o juiz Emanuel José Matias Guerra afirma que a nomeação “contraria frontalmente os motivos determinantes para a criação daquela instituição e a põe em sério risco”. O documento afirma ainda que “diante dos pensamentos expostos em redes sociais pelo gestor nomeado”, Sérgio Nascimento poderia atuar “em perene rota de colisão com os princípios constitucionais da equidade, da valorização do negro e da proteção da cultura afro-brasileira”.
A Advocacia Geral da União chegou a recorrer da decisão, que ocorreu no início de dezembro de 2019. Contudo, pouco mais de uma semana depois, o Governo Federal preferiu suspender a nomeação de Camargo.
O caso não é isolado. Outros tribunais de Justiça no Ceará tiveram como objeto de julgamento determinações com repercussão nacional, incluindo decisões do Governo Bolsonaro em 2019.
É o caso da decisão do juiz Germano Siqueira, da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, na qual foi declarado inconstitucional o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. Esse programa foi estabelecido por meio da Medida Provisória 905, editada pelo presidente Jair Bolsonaro, e criou um novo marco legal para contratações de trabalhadores na faixa dos 18 aos 29 anos.
Segundo a justificativa do magistrado, o Poder Executivo não poderia menosprezar o papel do Congresso Nacional, governando através de medidas dessa natureza, pois deveria respeitar a harmonia e a independência entre os Poderes. Publicizada no fim de novembro, essa foi a primeira decisão no País a contrariar a MP 905.
Jurisprudência
Os operadores da Justiça (magistrados, procuradores, advogados, dentre outros) têm autonomia para a interpretação da legislação ao atuar em cada caso. As decisões não têm aplicabilidade nacional automática, mas têm eficácia em território nacional, explicam advogados consultados pelo Diário do Nordeste. No caso, por exemplo, da declaração de inconstitucionalidade do contrato “Verde e Amarelo”, a ação se referiu a uma disputa entre um ex-empregado da Empresa de Assistência Técnica Extensão Rural do Ceará (Ematerce) e a companhia. A decisão se refere exclusivamente a esse processo, sem ter uma aplicabilidade a outras ações que tratem do mesmo tipo de contrato. Portanto, outros tribunais podem ter diferentes posicionamentos em referência ao mesmo tema, caso provocados.
O diferencial, no episódio tratado no Ceará, é que a decisão do juiz Germano Siqueira criou jurisprudência sobre o tema, sendo o primeiro a tratar da Medida Provisória como inconstitucional. No futuro, ela poderá ser usada como referência para outras decisões semelhantes.
A suspensão da nomeação de Sérgio Camargo para a presidência da Fundação Palmares tem aplicabilidade nacional, mas não necessariamente todas as decisões tomadas pela Justiça Federal do Ceará terão uma abrangência em todo o País. Decisões referentes a todo o território nacional são, em regra, tomadas no Tribunal do Distrito Federal.
A exceção disso é quando as decisões se referem a direitos difusos, ou seja, não aplicados apenas a um indivíduo, mas a um grupo ou mesmo a toda a sociedade. É o que explica o coordenador do Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, Gustavo Cabral.
“A lógica clássica do processo é tratar de sujeitos singularmente, mas os processos civis têm evoluído no sentido de demandas que vão além das individuais”, aponta ele.
este sentido, continua, “qualquer cidadão, independentemente de ser advogado, pode entrar com a ação em qualquer lugar do Brasil para questionar. (...) Então, é possível entrar na Justiça Federal do Ceará e aquela decisão ter efeitos nacionais”.
Além disso, qualquer decisão tomada pela Justiça Federal cearense é em primeira instâncias e passível de recurso. Quando ocorre, o recurso é apresentado no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife (PE).
Atualmente, há seis representações de candidatos cearenses do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2019 protocoladas no Ministério Público Federal do Estado, apontando possíveis inconsistências na correção das provas. Cabe ao MPF-CE apurar as informações e decidir se entra ou não com ação judicial contra o Governo Federal. Em 2010, a 7.ª Vara Federal do Ceará chegou a suspender temporariamente o exame, após série de irregularidades.
Justiça especializada modificou regras
O coordenador do Programa da Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, Gustavo Cabral, ressalta a influência também das Justiças especializadas. “A Constituição Federal, com pequenas exceções, foi criando uma Justiça muito ‘pessoalizada’. Nós temos a Justiça comum, que é a estadual, que possui competência residual.
Ou seja, tudo que o que não for das Justiças Especializadas vai para ela. Dentre as especializadas, você tem a Justiça Militar, a Justiça do Trabalho e a Federal”, pontua.
Partiram de duas das Justiças especializadas as decisões judiciais referentes a outros temas de discussão nacional. Após pedido do Ministério Público Federal do Ceará, foi suspensa fiscalização e multas por videomonitoramento. A decisão da Justiça Federal do Ceará considerou que o uso de câmeras capazes de registrar imagens do interior de veículos viola o direito à intimidade e à privacidade assegurado pela Constituição Federal.
A sentença do juiz da 1ª Vara Federal, Luís Praxedes Vieira da Silva, determinou ainda que o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) editasse resolução sobre o videomonitoramento com base na decisão judicial. O novo regramento teria validade para as regras de trânsito das três esferas de governo – federal, estadual e municipal.
Além disso, a Justiça Federal também suspendeu, em novembro do ano passado, o Ato nº 62 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no qual havia sido liberado 63 novos produtos agrotóxicos no Brasil.
Em outro caso, decisão do Tribunal Regional de Justiça considerou inconstitucional trecho da reforma trabalhista que obrigada empregados que perdessem ação contra o empregador de pagar os honorários advocatícios do empregador. Esta decisão valeria para casos em que a parte perdedora seja beneficiária da Justiça gratuita.
Concurso da Polícia Federal
Em 2019, a Justiça Federal deferiu, em parte, pedido para a reabertura de edital para concurso na Polícia Rodoviária Federal.
Contingenciamento de verbas
A Justiça Federal do Ceará recebeu ainda ações contra o contingenciamento de verbas no ensino superior pelo Ministério da Educação, em 2019. A competência foi declinada em favor da 7ª Vara Federal da Bahia.
Atrasos no INSS
Há também ações ainda em trâmite na Justiça. Por atrasos, o MPF-CE ingressou com ação contra o INSS para que requerimentos de benefícios previdenciários sejam analisados em, no máximo, 30 dias.