Na segunda semana de depoimentos na CPI da Covid-19, os senadores mergulharam nas investigações em busca de encontrar culpados pela escassez de vacinas no Brasil. O Diário do Nordeste conversou com cientistas políticos para avaliar os impactos políticos da segunda semana de CPI tanto para o Governo Federal como para o Ceará.
Para eles, as testemunhas ouvidas pelos parlamentares complicaram ainda mais a situação do Governo Federal em relação à gestão da pandemia. Por outro lado, senadores da base governista intensificaram as críticas à conduta do relator do caso, Renan Calheiros (MDB).
A semana de trabalho no colegiado também ficou marcada por discussões acaloradas, chegando ao ponto de o ex-secretário de Comunicação do Governo Federal, Fábio Wajngarten, ser ameaçado de prisão por alguns senadores, incluindo o relator.
As revelações dos depoentes também tiveram repercussões no Ceará, onde o Governo do Estado acusou que o atraso nas tratativas da União com a farmacêutica Pfizer travou negociações do governo estadual com a empresa.
Em Brasília, os senadores cearenses mantiveram a postura adotada na semana anterior. Tasso Jereissati (PSDB) fez críticas à condução do Governo Federal. Por outro lado, Eduardo Girão (Podemos), reforçou a importância de que representantes de estados e municípios sejam convocados para a CPI.
Fogo-amigo
Oficializado como diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em novembro do ano passado, Antônio Barra Torres foi, até agora, a pessoa mais próxima ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a criticá-lo na CPI.
Um ponto-chave da fala do representante da Anvisa foi quando ele confirmou que havia um plano do Governo Federal de alterar, através de um decreto presidencial, a bula da hidroxicloroquina, com objetivo de ampliar o seu uso para que fosse usada no tratamento da Covid-19.
"Destarte a minha amizade com o presidente, a conduta do presidente diverge da minha nesse sentido. As manifestações que faço têm sido todas em favor da ciência”
> Confira o resumo completo do depoimento de Barra Torres
À espera de uma resposta
No dia de discussões mais tensas na CPI, Fábio Wajngarten revelou que o Governo Federal demorou dois meses para responder uma carta da farmacêutica Pfizer, que oferecia uma parceria para o fornecer doses da vacina ao Brasil.
A oferta da farmacêutica foi avisada em 12 de setembro, mas só foi respondida em 9 de novembro por Wajngarten.
> Leia na íntegra a carta enviada pela Pfizer:
Diante dos senadores, Wajngarten também negou declaração dada à revista Veja em que classificou como incompetente a conduta do Ministério da Saúde nas negociações com a Pfizer. Contudo, a declaração foi confirmada em áudio divulgado pela própria revista.
Diante da inconsistência de versões, Renan Calheiros ameaçou pedir a prisão do ex-secretário, mas foi criticado pela base governista e não encontrou apoio no presidente da CPI, Omar Aziz.
Ainda na quarta-feira (12), a sessão foi suspensa no fim da tarde depois que o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente Jair Bolsonaro, chamou Calheiros de “vagabundo”.
70 milhões de doses
Na quinta-feira (13), o gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, prestou um dos depoimentos mais comprometedores contra o Governo Federal, segundo alguns senadores que compõem a CPI. Ele apresentou documentos mostrando que o Executivo ignorou pelo menos cinco ofertas de doses da vacina feita pela farmacêutica em 2020. Dentre elas, a remessa de 70 milhões de imunizantes.
Em outro trecho do depoimento, ele confirmou que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), participou de reuniões sobre a compra de vacinas. Essa informação reforça a hipótese investigada por alguns senadores de que há uma espécie de "ministério paralelo" ao da Saúde que orienta e define as medidas que serão adotadas no combate à pandemia do coronavírus.
> Confira o depoimento do representante da Pfizer:
O que dizem cientistas políticos:
1) Quais impactos os depoimentos do diretor-presidente da Anvisa, Barra Torres, do ex-secretário da Comunicação, Fábio Wajngarten, e do presidente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, podem ter sobre o Governo Bolsonaro?
Gabriella Bezerra
Cientista política, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem)
Os impactos da CPI, como um todo, são intensos. A Comissão promove uma exposição contínua e encadeada das ações do Executivo Federal e das suas figuras centrais. Além disso, o processo de acareação expõe as contradições e as inconsistências, como também, as tentativas de desviar o foco e de abafar o processo de investigação.
O posicionamento de Wajngarten mostrou os riscos que o governo corre, em especial, de ser responsabilizado por má administração, imprudência, incompetência etc. Mas mostrou também que ainda não temos um “whistle-blower”, uma expressão em inglês muito utilizada para falar daqueles que aceitam os riscos ou fazem acordos para se tornarem delatores. Como, por exemplo, foi o deputado Roberto Jefferson, no escândalo do mensalão.
A fala clara, direta e objetiva do presidente da Pfizer foi, com certeza, desconcertante. Mostrou pormenorizadamente o fracasso das negociações e que o cenário hoje poderia ter sido radicalmente distinto, muitas mortes poderiam ter sido evitadas. O que reforça a importância das CPIs, apesar de muito pessimismo de parte da população com relação às atuações do legislativo.
Para finalizar, destaco as mudanças na condução da gestão da saúde desde o início dos trabalhos da Comissão. O Governo já fez ajustes na sua atuação, tentando contornar o desgaste.
Cleyton Monte
Cientista político, professor da universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem)
Eles colocaram o Governo Federal numa situação muito difícil, porque são três figuras diretamente ligadas à política de vacinação, aos insumos, à toda a programação de combate à pandemia a partir das vacinas. O Barra Torres foi incisivo em discordar, pela primeira vez de uma forma clara, do Bolsonaro.
O Wajngarten se atrapalhou todo na CPI, mas, de certa forma, deixou claro que houve omissão do Governo Federal. E o Carlos Murillo destacou que houve omissão, para falar o mínimo, porque alguns senadores falam em incompetência e até má intenção.
Esse três depoimentos foram muito negativos, colocaram um peso muito grande e destacaram que não era desconhecimento do Governo Federal. O que essas falas detalham é de que havia uma ação deliberada de não agir em uma política pró-vacina. Será difícil o governo conseguir se desvencilhar disso.
2) Qual avaliação você faz até agora da participação dos cearenses na CPI? Como as declarações dessa semana, relacionadas à vacina, refletem na política local?
Gabriella Bezerra
Em vista às repercussões da Covid-19, especialmente a força da segunda onda, algumas falas do senador Eduardo Girão causam espanto. Talvez seja interessante para ele manter acesa a chama de uma resistência mais negacionista. Apesar de ter se tornado comum ver esse comportamento dos atores políticos, não deixa de ser surpreendente.
Além disso, ele tem encarado a CPI como um espaço para se constituir em nome de oposição no plano estadual, forçando, inclusive, a entrada dos gestores municipais e estaduais no rol da investigação. Isso é de se esperar, faz parte de sua estratégia política e eleitoral. Se é uma boa estratégia, só o tempo dirá.
Por outro lado, o senador Tasso Jereissati mantém seu perfil sério e comedido, importante no cenário atual. Sua performance não ganha “likes” e engajamento nas redes sociais, mas a sua contribuição para os resultados da Comissão é positiva e seu comprometimento se somará a sua biografia política.
Os reflexos da não negociação das vacinas poderá ser usado no discurso político pelos governos municipal e estadual justificando, por exemplo, as medidas mais impopulares de isolamento social, como também, responsabilizando o Governo Federal pelos danos econômicos e sociais.
Cleyton Monte
Tanto Tasso Jereissati quanto Eduardo Girão são destaques na CPI, são figuras que estão aparecendo com frequência, mas de forma diferente. O Tasso de uma forma muito crítica, isso é interessante porque nunca foi muito o perfil dele no Senado ter essa crítica incisiva. Ele vem pontuando questões interessantes. Nesta semana, destacou as declarações do presidente Bolsonaro sobre a China, de que estaria ocorrendo uma guerra biológica e química. Então, ele vem sempre se colocando nessa oposição ao que o governo vem elaborando.
Já o senador Girão, apesar de sempre se posicionar como um parlamentar independente, de até ter solicitado investigação do que a imprensa vem chamando de Bolsolão e de ter solicitado informações sobre as andanças do presidente por Brasília, em sentido macro, ele acaba reforçando a tropa de choque de apoio ao Governo Bolsonaro. Isso porque ele faz a defesa do tratamento precoce, ele é claro em relação a isso, não há meias palavras, e esse também é o discurso do presidente Bolsonaro.
O senador também tenta puxar o debate para estados e municípios, que desde o início da CPI é o objetivo do presidente, e criticou as políticas de distanciamento. Querendo ou não, mesmo que tente se desvencilhar, ele está ali no discurso se alinhando com os bolsonaristas.
E claro que tudo isso reflete na política local. Até agora, ao que tudo indica, ele vai concorrer ao Governo do Estado, e vai concorrer sendo oposição ao grupo do governador Camilo Santana, então ele está se colocando como opositor. Já o Tasso, claro que esse protagonismo vai colocá-lo em outro patamar, tanto na política nacional quanto no Ceará.
3) Na próxima semana, devem prestar depoimento os ex-ministros Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, além da secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. O que esperar desses depoimentos?
Gabriella Bezerra
Teremos que esperar para ver qual vai ser a estratégia na comissão, mas podemos especular, com base em dois fatores, primeiramente, as repercussões na CPI são distintas, pelo seu próprio escopo. Nesse sentido, é diferente fazer uma fala polêmica em uma rede social, sem correr riscos judiciais, e em um depoimento no Congresso Nacional. Especialmente depois que o senador Renan Calheiros jogou os efeitos do perjúrio e as consequências no âmbito criminal.
Outro fato que deve ser considerado, é a sequência dos depoimentos. O próximo depoente leva em conta as falas anteriores e suas repercussões para ajustar suas falas, buscando se proteger ou construir negociações. Assim, é de se imaginar que eles optarão por uma estratégia mais esquiva ou mais genérica, para não ter seu nome envolvido em retaliações. Não imagino que alguém correrá o risco, optando por uma estratégia mais agressiva.
Cleyton Monte
Ernesto Araújo, provavelmente, será questionado sobre sua a atuação com nossos principais parceiros comerciais, que também são os grandes fornecedores de insumos para a vacina. A gestão dele foi muito hostil à China, então acredito que ele será muito pressionado sobre qual a política do Itamaraty com relação à vacina.
Com relação ao ex-ministro Eduardo Pazuello, provavelmente vai ser a figura mais criticada e mais pressionada na CPI. Por isso que ele está evitando comparecer à Comissão, porque ele foi a figura que, por mais tempo, permaneceu à frente do Ministério da Saúde. Ele também está ligado à questão da crise do oxigênio em Manaus. Além disso, os secretários estaduais de saúde o acusam de falta de coordenação e inexperiência.
Já a Mayra Pinheiro, que a imprensa nacional apelidou de Capitã Cloroquina, também terá pela frente uma situação muito difícil, porque ela era uma espécie de secretária executiva do Ministério da Saúde. Era ela quem colocava em ação as diretrizes do Governo e, diferentemente de outros ministros, ela sempre trabalhou alinhada ao presidente com relação ao tratamento precoce e nas críticas ao distanciamento.
Agenda da CPI
Para a próxima semana, devem participar da CPI os ex-ministros Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Eduardo Pazuello, da Saúde, além da secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro.
O ex-chanceler deve prestar depoimento na terça-feira (18) e Pazuello no dia seguinte. Já Mayra deve se apresentar diante do colegiado na quinta-feira (20).
Na última sexta-feira (14), o ex-ministro da Saúde conseguiu um habeas corpus para que se mantenha em silêncio no colegiado sempre que entender que não precisa responder a perguntas dos senadores.