“Para enxergar é preciso olhar, é preciso saber o que se olha”. A frase da polonesa Olga Tokarczuk, prêmio Nobel de literatura de 2018, serve de guia para Dia Nobre, escritora cearense de Juazeiro do Norte, que apresenta um livro fundamental para iluminar os acontecimentos religiosos e políticos do Nordeste brasileiro. No centro da trama, uma mulher do Cariri que a cúpula da Igreja Católica tentou apagar da história.
“No final do século XIX, um padre francês disse que 'Deus não deixaria a França para obrar milagres no Brasil', ainda mais se se tratasse de uma mulher negra, pobre e analfabeta”, escreve a autora, em uma carta enviada aos primeiros leitores da obra. “Por dez anos, estive debruçada entre diversos documentos (cartas, jornais e um longo processo episcopal), tentando entender o percurso dessa mulher que mobilizou milhares de pessoas em romarias quando era viva, mas que após sua morte foi esquecida e teve até seu túmulo destruído”.
O resultado é um livro revelador e extraordinário como este “Incêndios da Alma — Maria de Araújo e os milagres do Padre Cícero: a história que o Vaticano tentou esconder” (editora Planeta). Dia Nobre soube atender às recomendações da colega Olga Tokarczuk. Sabia o que
olhava. Com olhos de escritora e o rigor de uma doutora em História, ela traz detalhes e informações nunca dantes observados sobre a incrível personagem de Juazeiro.
Ao receber a comunhão, Maria sentiu um calafrio e um arrebatamento tomou-lhe a alma, narra a autora. Ela caiu em êxtase. Quando voltou a si, notou que um líquido espesso escorria da sua boca. Era sangue. Ela olhou para seu diretor espiritual e mostrou a transformação que acabara de ocorrer. O sangue brotava da hóstia consagrada em tão grande quantidade que caía no chão.
Estávamos aí na distante primeira sexta-feira da quaresma de 1889, no povoado de Juazeiro, ainda pertencente ao município do Crato — lugar de origem do Padre Cícero. Ninguém conseguiria mais deter as romarias de todo o Nordeste rumo ao Cariri. O fenômeno resultaria no pantim de Roma sobre “meu Padim”, afastando-o da rotina da igreja sob a acusação de manipular a fé popular.
O importantíssimo livro sobre Maria de Araújo sai no momento da virada de jogo. A história sempre capota na curva. O patriarca de Juazeiro passa por um processo de beatificação pelo mesmo Vaticano que o perseguiu — a cúpula da Igreja Católica Apostólica Romana talvez careça
do patriarca de Juazeiro para deter o avanço dos templos neopentecostais entre os nordestinos. A romaria que era condenada, hoje é a salvação.
Aqui fica apenas o pitaco de calçada de um cronista devoto do maior santo eleito pelo povo brasileiro. E não seria a própria Maria do milagre também digna da santidade reconhecida por Roma? Depois de tanto ser perseguida por bispos de todos os mantos e dioceses, inclusive depois de morta, não seria essa humilde serva do Cariri a prova também de santidade?
É só uma pergunta de um leigo. Recomendo a leitura atenta de “Incêndios da Alma” para entender a dimensão dessa brava mulher negra do Cariri que os poderosos tentaram passar a borracha e apagar a existência. Viva Maria de Araújo!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.