Prefeitos no Ceará tentam fugir do preço político do lockdown em problema que não é individual

Agentes públicos precisam enfrentar o risco de desgaste político em nome de uma responsabilidade que é coletiva

A pandemia de Covid-19, assim como o enfrentamento dela, não é, nem de longe, problemática individual. De forma dolorosa, a agonia desta crise sanitária nos lembra disso todos os dias. O senso de coletividade é determinante para que medidas sejam eficazes para, enfim, frear a disseminação da doença.

A premissa vale para nossas atitudes individuais - guiadas por uma responsabilidade igualmente coletiva - e também para o poder público. O descompasso entre medidas restritivas adotadas por municípios vizinhos em diversas regiões do Estado, porém, parece ignorar isso. 

No Ceará, Fortaleza está em lockdown desde o último dia 5 até o próximo dia 18 de março. Por recomendação do governador Camilo Santana (PT), outros municípios, no interior do Estado, decretaram o mesmo.

O preço político das restrições mais duras, porém, não é todo prefeito que quer pagar.

Na Região Metropolitana da Capital, municípios vizinhos de Fortaleza, como Caucaia e Maracanaú, por exemplo, estão com 100% de ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) para Covid-19, mas seguem com comércio e outros serviços funcionando. Com restrições, é preciso dizer, mas funcionando.

Situação semelhante, conforme publicado pelo Diário do Nordeste, é vista em outras regiões do Estado. No Cariri, os prefeitos de Crato e Barbalha defenderam a adoção de lockdown, mas em reunião com gestores de municípios da região na última terça-feira (9) prevaleceu o que foi defendido por Juazeiro do Norte: intensificar a fiscalização, mas manter estabelecimentos comerciais de portas abertas. 

Impasse político com opositores

Cria-se, então, um impasse de natureza política. Ainda que prefeitos não exponham publicamente reclamações, para evitar qualquer mal-estar institucional - que, convenhamos, seria pior num momento tão crítico -, a insatisfação, em algum nível, existe.

O lockdown se mostra eficaz em diferentes países do mundo, como Portugal, mas se já não há adesão massiva à medida por aqui, nas localidades onde foi decretado, fica ainda mais difícil esperar alívio, diante do que tem acontecido, com esforços municipais de contenção da doença sendo colocados em risco por fatores externos.

Não é novidade que a diferença de medidas restritivas acaba incentivando um fluxo preocupante de pessoas entre uma cidade e outra, até mesmo pela proximidade, justamente num momento em que é preciso reduzir a circulação. 

O fato de que o governador tenha apenas recomendado e não imposto lockdown na totalidade dos territórios cearenses deixou as decisões passíveis às vontades políticas, assim como tem sido em âmbito nacional.

Coincidência ou não, cidades comandadas por prefeitos de oposição não atenderam ao apelo de Camilo. Na contramão, acertam os municípios que têm adotado, regionalmente, medidas em conjunto.

Há, na postura do chefe do Palácio da Abolição, respeito à autonomia dos municípios, claro. Também tem havido diálogo constante entre Governo do Estado e prefeituras, além da recomendação já feita. O momento, contudo, impõe mais.

Ideologias x enfrentamento à Covid-19

O desgaste político é fato, mas não pode ser prioridade na tomada de decisão. O agente público que age assim minimiza a possibilidade de perdas ainda maiores. Diferenças partidárias, ideológicas, não deveriam se refletir nas estratégias de enfrentamento da doença, que atinge violentamente todo o Estado: 98% dos municípios cearenses têm classificação de risco 'alto' ou 'altíssimo' para transmissão da Covid-19, de acordo com o Governo.

Sem unidade, o afrouxamento de medidas de distanciamento social em alguns municípios fatalmente acabará sobrecarregando - ainda mais - o sistema de saúde de cidades vizinhas, especialmente das que servem como "polos". O prognóstico é de especialistas.

Sem o apoio federal ao lockdown, a situação exige, sim, alinhamento fino entre Governo do Estado e prefeituras. A premissa é mesmo a do início deste texto: sem senso de coletividade, a segunda onda da pandemia por aqui só tende a ficar mais preocupante, e não dá para ficar enxugando gelo diante de um inimigo tão cruel.