Belchior nunca foi só um romântico

As composições do cearense sempre tinham um profundo conteúdo sociopolítico, até nas letras que supostamente falam de amor. É preciso escutá-lo com atenção

Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes - o maior nome da Música Popular Brasileira como ele gostava de falar em tom de brincadeira ou de deboche - disse certa vez em uma entrevista: “Não sei ser outra coisa além de nordestino. No Sul é que as pessoas preocupam-se em definir autenticidades”.

Vejam só, com mais de 300 composições sobre os mais variados temas, sempre com reflexões e críticas sobre política, cultura e alienação, Belchior foi colocado em uma prateleira de “apenas um compositor romântico”. Não que ele não falasse de amor, pelo contrário, o cearense foi um romântico incurável, mas as suas letras iam muito além.

Belchior tinha como grandes referências musicais suas raízes do norte do Ceará, da cidade de Sobral, dos cânticos das igrejas, das estações de rádio, dos megafones de feiras, do sax e da viola de seu avô, do coral que sua mãe participava, das rezadeiras, das carpideiras, das serestas e até do aboio do vaqueiro.

Foram essas influências que o tornaram um artista tão singular, mesmo com toda a indústria fonográfica sudestina tentando transformá-lo, criando gavetas, estereótipos ou tentando enquadrá-lo em um único estilo.

Você já ouviu a música “Paralelas”, por exemplo? Essa canção é um clássico do álbum Coração Selvagem, de 1977, que, por meio de regravações como a de Vanuza e de Erasmo Carlos, ganhou um contexto mais romântico aos ouvidos do público, mas essa música não é somente sobre dois corpos que se amam e se afastam.

A letra fala do encantamento que Belchior sentiu em sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, onde coloca a cidade maravilhosa como a grande protagonista dessa história. Bel cita a arquitetura, os habitantes, os percursos, as linhas e paisagens que compõem a vista e utiliza de dois personagens para conduzir uma trama sobre amor e desamor, caminhos paralelos, o lugar do capital e do humano, do dinheiro e dos sentimentos, sobre amar ou garantir um “patrimônio”.

E no escritório em que eu trabalho E fico rico, quanto mais eu multiplico Diminui o meu amor
Belchior, Paralelas

Hoje, entro pro time de intérpretes dessa canção e quando você ouvir a nova versão de Paralelas, talvez siga achando romântica, mas provavelmente vai perceber outras nuances, vai ser arrebatado por outras camadas da letra.

Ouça a música aqui 

Ouvir Belchior é um exercício e precisa ser feito com atenção, nunca deve ser levado por um único viés. Suas canções sempre querem dizer muito mais do que acham que dizem.

Quando decidi criar o show “Silvero interpreta Belchior” foi justamente com essa intenção: chamar atenção para essas composições, ouvir em novos tempos, com outros sentimentos, sempre atual. Belchior nunca esteve interessado em teorias, porque o seu delírio criativo era com as coisas reais. Suas canetadas refletem suas vivências, suas percepções sobre a sociedade e sobre si.

Superficializar a obra de Belchior é colocar um concreto por cima de seu profundo conteúdo humano e sociopolítico. Espero que se sintam atravessados por ele, assim como sempre me sinto. Ouçam Paralelas em todas as plataformas de áudio!

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor