Em 2013 o Hospital Psiquiátrico Mira Y López, o “Mira Lopes”, era demolido. Descartado como prédio possível de tombamento, o Mira era na cultura popular de Fortaleza mais que um instituto médico, era um personagem da cidade, uma ameaça materna: “minino, te aquieta, isso aqui não é o miralopes”, ou mote para “frescar” com algum amigo: “ó o doido, o Mira Lopes te liberou foi?”.
Mas essa familiaridade com o espaço não dialoga corretamente com o que se vivia na lógica manicomial do Brasil dos últimos séculos, espaços para alienados foram fantasmas urbanos tão assustadores e marcantes no imaginário social das cidades que quem há mais de 20 anos, provavelmente, já foi ameaçado de ir parar no Mira y Lopes por qualquer atitude de “doido”.
O crescente interesse e a preocupação com temas de saúde mental e a importância da psiquiatria ser entendida como um cuidado não apenas para loucos traz a relevância de pensar a História da Loucura e a própria compreensão do que é ser louco. Michel Foucault, importante estudioso do tema no ocidente explicita que loucura não é apenas uma questão mental ou biológica, a loucura é uma emergência da sociedade em modernização.
Por mais que obras como o “Elogio da Loucura”, de Erasmo Roterdã, ou a “Nau dos insensatos”, de Brant, sejam referências culturais sobre a loucura é o cientificismo do século XVIII/XIX que vai definir a questão da insanidade. A loucura deixava de ser ação de demônios e entidades mágicas e passava a ser questão médico-científica.
A tentativa de criar leis sociais, positivistas, que garantissem ordem e progresso fez com que os fora de ordem, fora da lei, no mundo da lua, todos os que não se encaixavam, enquadravam e disciplinavam fossem para instituições “de reclusão”, de “sequestro.
Os primeiros hospícios e os modernos hospitais, quartéis, escolas e fábricas com seus controles de tempo e movimentos, suas fardas, salas/celas, com seu banho de sol entre as atividades, seus fiscais de corredor, gerentes/sargentos, seus diretores e toda a sua lógica são marcos de uma modernidade que queria controlar e disciplinar corpos e mentes.
Em 1852 o Brasil abriu o Hospício D. Pedro II, primeira instituição para isolar os alienados do Império. Já em 1882 Machado de Assis ironizava essas práticas e ideias com seu clássico “Alienista” quando o doutor Simão Bacamarte aprisiona quase toda a sua comunidade no seu hospício, a Casa Verde. Muitos destes espaços de sequestro ficaram famosos, o Instituto Philippe Pinel, ligado ao Hospício Pedro II, surgiu no Rio em 1937 o termo “pinel” passou a definir os “loucos”.
Mas a maioria dos casos vai muito além da anedota e da ironia literária. O caso mais famoso e mais trágico do mal manicomial é o Hospital Mental de Barbacena, em Minas Gerais, o Hospital Colônia. Fundado em 1903, levou adiante um tratamento tão desumanizador que ficou conhecido como o “Holocausto Brasileiro”.
Suas histórias são assustadoras e revoltantes, nascido como estância de luxo para ricos e abastados se curarem em meios aos ares das serras mineiras, o Hospital Colônia passou a recolher pessoas sem a necessidade de diagnostico de qualquer transtorno.
Muitos pacientes eram apenas indesejados pela sociedade; crianças rejeitadas por mau comportamento, deficiência ou por serem frutos extraconjugais; mulheres estupradas e silenciadas que para não denunciar figuras importantes da sociedade viravam loucas perigosas; epiléticos, alcoólatras e muitos homossexuais eram abandonados neste depósito de vidas indesejadas, obrigadas a comer ratos, beber água de esgoto. Havia tanto eletrochoque que relatos dão conta de que a energia da cidade chegava a não suportar a carga de tantas eletrocuções.
Até o comércio de cadáveres era feito, a matéria-prima era abundante e descartável, não havia quem reclamasse os mortos pela loucura. Mais de 60 mil mortes foram registradas na Colônia.
Um trem de carga, chamado de trem de doidos, levava os “pacientes” ao hospital. A comparação com os judeus embarcados para campos de concentração aumentou a associação com o Holocausto. O manicômio se vertia de espaço terapêutico em instrumento de violência do Estado. Esses tipos de abusos institucionais pioravam os períodos ditatoriais onde esses espaços atendiam também os indesejados políticos.
A loucura justificava a “limpeza social”, gays, comunistas, subversivos, devassos e histéricas saiam de circulação para serem esquecidos. Espaços manicomiais eram normalmente construídos longe dos ditos normais. Pobres e ricos eram afastados para não embaraçar os sãos, nosso primeiro hospital psiquiátrico foi o Asilo de Alienados São Vicente de Paulo, inaugurado em 1886, na Parangaba, então município separado e distante de Fortaleza.
O Mira y López já era fruto de outra lógica, buscava abordagem e tratamentos diferentes, o século XX mudava lentamente o tratamento dado à questão mental, as duas Guerras Mundiais e seus milhões de vítimas emocionais – não contabilizadas como vítimas, mesmo que muitas vezes seus impactos tenham sido fatais – impossibilitou a simples segregação e movimentos contrários a tratamento tradicional cresceram.
A prática manicomial começou a demonstrar sua incapacidade, o Mira surge nesse período como comunidade terapêutica e embora bem-intencionado e com proposta até progressista ele foi palco para as contradições entre essa intenção e a realidade de despreparo do estado e da sociedade para uma repactuação sobre a questão mental.
Só em 2001 a Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica dava novas diretrizes para a Saúde Mental, a nova proposta diminui as verbas e leva ao fechamento do Mira em 2012, seu terreno foi vendido e o prédio que viveu da loucura da Fortaleza foi ao chão há uma década, hoje é um agradável condomínio que em nada guarda as lembranças de todas as contradições e complexidades das histórias e silêncios que se inseriram naqueles paredes.
Tenho bons e queridos amigos que hoje fazem daquele espaço um lugar mais feliz, entretanto, essa felicidade não pode ocultar as memórias trágicas e dolorosas que o prédio abrigou, Fortaleza precisa aprender a voltar a seus traumas e contar em análise suas dores. O hospital psiquiátrico ao lado da Igreja dos Remédios guarda uma profunda relação com a história da cidade, mas a cada ano sua memória fica mais distante.
Machado escreveu que a loucura não era uma ilha perdida no oceano da razão, mas um continente. Somos nativos da loucura, dizer que todos tem um pouco de louco não é apenas um lugar comum é um alerta, qualquer um pode se tornar um alienado ao não incorporar padrões esperados e desejados, todos podemos virar “um estranho no ninho” e parar em um desses lócus de isolamento.
Ver pessoas em 2023 defendendo o retorno da internação obrigatória e do manicomialismo como o caminho mais fácil e rápido para problemas mais sociais que sanitários me obriga a retomar esses traumas e escrever sobre esses nossos “patrimônios sombrios”.
Em maio algumas datas deixam o tema ainda mais pertinente: 17/05 foi Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia, 18/05 foi Dia Nacional da Luta Antimanicomial e Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Esses marcos me fizeram pensar na barbárie que atingiu crianças, mulheres, homossexuais, pessoas com transtornos mentais e outras vítimas desse pesadelo institucionalizado, vozes silenciadas pelo selo da loucura, falar e denunciar permanentemente essas práticas evita que ações assim sejam normatizadas ou pior – como aconteceu por décadas – apenas ignoradas, como se o efeito colateral da civilidade e da modernidade fosse uma profunda e inevitável cegueira social.