Eles são muitos, mas nós sabemos voar: as histórias de cearenses brilhantes na aviação

Ceará tem nomes fundamentais à história do País, mas praticamente desconhecidos até de seus conterrâneos

Em 2023, duas notícias ligadas ao mundo aeroespacial chamaram a atenção no Ceará. Em fevereiro, o Aeroporto Internacional de Fortaleza voltou a ter o nome do aviador cearense Pinto Martins na fachada. O nome do aeroporto havia sido apagado da frente do terminal pela Fraport, empresa alemã concessionária do equipamento desde 2018.

A segunda notícia, de julho, anunciava que o governo estuda uma nova unidade do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em Fortaleza.  

Embora as notícias possam passar despercebidas para a maioria dos cearenses, elas trazem destaque aos nomes de dois conterrâneos nossos que personificam esses processos e as contradições desse modelo e envolvem diretamente o Ceará e os cearenses.

Pinto Martins

Euclydes Pinto Martins e Casimiro Montenegro Filho são nomes fundamentais à história do País, mas praticamente desconhecidos até de seus conterrâneos. Poucos cearenses a quem perguntei tinham alguma ideia sobre a vida destas personagens, mesmo que suas histórias tenham sido tão intensas, complexas e impactantes para seus compatriotas. 

Pinto Martins nasceu em 1892 em Camocim, foi um dos primeiros aviadores do Brasil, teve muitos feitos relevantes, mas o maior deles foi o primeiro voo completo sobre o Atlântico, de Nova York ao Rio de janeiro. A bordo de um hidroavião bimotor ele decolou em 1922 na tentativa pioneira de uma viagem entre as Américas do Norte e do Sul, a expedição foi patrocinada pelo jornal "The New York World" e o histórico voo foi registrado detalhadamente.

Após várias falhas, quedas e quebras a aeronave ‘Sampaio Corrêa II’ chegou ao Brasil, passando pelas cidades cearenses de Camocim e Aracati, chegando ao Rio em fevereiro de 1923. 

O engenheiro e aviador cearense era deslumbrado por tudo que fosse símbolo da modernidade, estudou Engenharia Mecânica aplicada às estradas de ferro nos Estados Unidos, foi operário de fábricas de locomotivas e inspetor da Estrada de Ferro. Logo migrou das ferrovias para a aviação.

Empolgado com as conquistas, se voltou para outro desafio, se envolvendo com as primeiras negociações para explorar Petróleo no Brasil. Fracassado, falido e traído, tendo mais fama que retorno material, o cearense foi encontrado morto em seu quarto, com um tiro na cabeça apenas um ano depois da heroica travessia aérea sobre o atlântico. 

Sua história foi marcada por infortúnios, quedas e desafios dignos de uma tragédia grega, e sua morte ainda hoje é questionada por biógrafos e pesquisadores. Sendo suicídio ou assassinato, seu desaparecimento está associado à busca pelo "ouro negro”. Oficialmente, Martins, transtornado e deprimido pelas dívidas e fracassos, acabou com a própria vida, para outros o aviador foi assassinado por “poderosas forças”.

Monteiro Lobato no livro "Escândalo do Petróleo e do Ferro" o aponta como vítima “dos interesses sobre o petróleo brasileiro”, um dos mártires nacionalistas da exploração do petróleo no Brasil.  

Apesar das muitas desventuras, ele fez história na aviação mundial e está na seleta elite do pioneirismo aéreo. O ilustre camocinense percebeu muito cedo a importância econômica da aviação e do petróleo, enfim, do investimento em modernidade e conhecimento para a economia nacional. Uma lei de 1952 nomeou o Aeroporto de Fortaleza em sua homenagem, mas mesmo em Fortaleza ele ainda é pouco reconhecido.

Montenegro

Nosso segundo personagem, Casimiro Montenegro Filho, nasceu em Fortaleza em 1904, construiu o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (CTA), gérmen da Embraer, e foi pioneiro do Correio Aéreo Militar (CAM), que virou o Correio Aéreo Nacional.

Os méritos do Marechal Montenegro ganharam maior visibilidade com a biografia “Montenegro. As aventuras do marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil”, de Fernando Morais, livro delicioso e imperdível. O autor diz que “numa época em que o Brasil importava até penicos, Montenegro sonhou em fabricar aviões no Brasil”. 

O militar participou do movimento de derrubada da “república oligárquica” em 1930. Como instrutor da aviação do exército, realizou em 1931 o primeiro voo do CAM e abriu várias rotas ligando os céus do sul e do nordeste do país.

Esteve ligado ao processo de criação do Ministério da Aeronáutica em 1941 e da Força Aérea Brasileira (FAB), a nova força era terreno propício para mentes ousadas. A autonomia dada aos jovens oficiais contribuiu para os revolucionários projetos de Montenegro. Aproveitando a aproximação militar entre EUA e Brasil na II Guerra e a boa vontade estadunidense, que tentava atrair o Brasil para o conflito, ele visita o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos em 1943. 

Volta decidido a construir uma instituição similar no Brasil e criar tecnologia aeronáutica nacional. O ITA e o CTA – construídos com projeto do comunista Oscar Niemeyer – projetavam reunir as melhores mentes, independentemente de sua origem política, ideológica ou econômica. Talvez isso tenha feito o ITA ser tão fortemente afetado pelo golpe militar de 1964.

O liberal e democrata Montenegro impediu enquanto pôde que inquéritos e punições atingissem alunos e professores do ITA acusados de subversão. Devido a essa atuação, Montenegro é retirado da direção do projeto e mandado à reserva em 1965. 

Enquanto os golpistas de 64 queriam que o instituto e o centro fossem meras oficinas de aviões para atender as forças militares, Montenegro sonhava com um complexo de desenvolvimento intelectual que atendesse ao país, no final do processo o educador venceu.

Exonerado por militares reacionários, o Marechal foi premiado em 1981, no primeiro Prêmio Anísio Teixeira da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo desenvolvimento educacional do país. 

Montenegro escreveu como muitos dos então comandantes da FAB “nunca entenderam, realmente, a importância do ITA”. Seu projeto era revolucionário. 

Eles são muitos, mas nós sabemos voar

Por três anos, fui professor de turmas voltadas à preparação para o vestibular do ITA, conheço o projeto e admiro a capacidade de foco e dedicação dos alunos e professores do modelo. Mas entendendo educação em um plano mais amplo e acessível, penso nas vantagens de ter materialmente essa base do ITA aqui e de valorizar a história destes cearenses pioneiros e desbravadores como forma de difundir sonhos transformadores. 

A educação cria os meios de se superar as impossibilidades. A vida educacional me apresentou privilegiadas mentes cearenses de diversas gerações, conheci grandes nomes da educação cearense, como os professores Nazareno Oliveira e o saudoso professor Assis Brito.

Por mais de uma vez, os ouvi contar como, nos anos 80, eles e outros interessados em aprovar cearenses no ITA foram ao sudeste conhecer as escolas campeãs dessa prova e ouviram que “no Ceará não havia nem professores nem alunos capazes de chegar à aprovação no instituto”.

Esses professores apostaram na nossa “incapacidade” e atualmente a taxa de aprovação de alunos das escolas cearenses no ITA é em torno de 40%. Esses resultados demonstram os efeitos de planejamento, vontade e diálogo na construção de uma sólida rede formativa.

Mesmo lideradas por escolas privadas, grandes redes de ensino e pautada pela competição de mercado, os impactos do sucesso do Ceará no ITA desenvolvem uma teia de conhecimentos que se desdobra e pode ir muito além dos números nos outdoors. Para isso é preciso pensar em uma perspectiva coletiva e ampla de formação estudantil e entender que ainda há muito a se realizar para que mais jovens possam sonhar e revolucionar suas realidades, ampliando nossa vocação para a ousadia e inquietação transformadora.

Potencial de explorar os céus

A possível nova unidade do ITA em Fortaleza e o HUB aéreo de nosso Aeroporto Pinto Martins são parte de uma lógica e de uma logística que destacam o Ceará para além de sua posição geográfica privilegiada e nos provoca a realizar nosso potencial histórico-intelectual na exploração dos céus.

Disseminar as biografias de Montenegro e Martins não é apenas enaltecer as histórias de personagens excepcionais, nem meramente exaltar o brilhantismo meritocrático individual, ao contrário, é demonstrar como o resultado de sonhos individuais com contextos coletivos, econômicos e sociais, propícios geram mudanças significativas nas conjunturas. 

As dificuldades do Ceará na educação ainda são muitas, as desigualdades são gigantescas, incontáveis alunas e alunos que sequer sabem o que é o ITA ainda precisam saber que é possível sonhá-lo, assim como outras tantas instituições educacionais que não se apresentam a esses jovens como caminhos possíveis. Essa realidade impeditiva em sua origem precisa ser enfrentada e modificada. 

Assim, volto às falas do professor Nazareno Oliveira, ouvi muitas vezes este grande educador sobralense citar uma frase atribuída nas redes sociais à Fernando Pessoa, que diz “somos todos anjos de uma asa só; e só podemos voar quando nos abraçamos uns aos outros”.

Voar é um desafio. Educar é um desafio. Ambos gigantescos, mas na coletividade os desafios se apequenam, e finalizo lembrando dos belos versos da poesia trovadoresca de Ednardo, que ao cantar o seu Pavão Misterioso, nos esperançava: “eles são muitos, mas não podem voar”.