Durante a infância passamos por um longo processo de aprendizado, tudo ao nosso redor é novo. Neste período, a compreensão do entorno é desafiadora, afinal, funções cerebrais e cognitivas ainda estão em desenvolvimento. Além disso, crianças ainda não possuem as ferramentas e o repertório necessário para pensarem de modo complexo, assim, a imaturidade cara à idade as leva a categorizar o mundo de modo dual: bom x mau; bruxa x princesa; mocinho x bandido etc.
À medida que a idade avança, por meio da maturação cerebral e vivencial, podemos sofisticar nosso modo de pensar: o dualismo, tipicamente infantil, cede espaço para a consciência do “espectro” das situações. Em razão disso, conseguimos compreender que pessoas boas também podem ter comportamentos reprováveis; nos damos conta que, às vezes, o resultado de uma ação não foi benéfico a despeito da intenção pura; assim como vemos que alguns atos, como caridades, podem ajudar pessoas que necessitam e, simultaneamente, estarem permeados de intenções duvidosas, autopropaganda, narcisismo e utilitarismo, sem nenhum altruísmo.
Entretanto, muitos adultos continuam a cultivar o pensamento dicotômico, típico das crianças. Assim, ignoram a noção de espectro e tendem a enxergar situações complexas de modo simplista e, sem se darem conta, atrapalham a própria vida. Por exemplo, diante de uma situação de mal-estar ou mesmo de transtornos (como ansiedade e depressão), buscam UMA causa para seus problemas. Questionam se estão assim por causa “disso” OU “daquilo” e, quando um bom profissional lhes elucida que sua depressão é multifatorial, que não há UMA causa, ficam contrariados.
É neste cenário que os “pensantes dicotômicos” encontram consolo em charlatões que crescem como ervas daninhas em redes sociais. Seus discursos, sem embasamento científico ou responsabilidade social, e às vezes com ares proféticos e sedutores, coadunam com a lógica dual por meio de uma exaltação cega à meritocracia.
Eles pregam que somos os únicos responsáveis pelos nossos problemas e, paradoxalmente, isso acalenta: ser culpabilizado pelo próprio sofrimento gera uma falsa sensação de controle. Ora, se o problema sou eu, “basta” que eu mude alguns hábitos e, num passo de mágica, tudo ficará maravilhoso!
Assim, essas pessoas ingênuas e sedentas por uma vida melhor, mas limitadas pela estrutura dicotômica de pensar, empenham grandes esforços em mudanças pessoais, leem pilhas de livros de autoajuda, participam de seminários de autodesenvolvimento.
Entretanto, o tempo passa, o dinheiro “investido” se dissipa e a grande mudança não chega… E, culpadas, tais pessoas reiniciam a autorrecriminação: “a culpa é 100% minha, afinal, se fulano conseguiu, eu também posso, basta eu me esforçar mais, querer mais” - ignoram que fulano é exceção e não regra.
Acreditar que basta estar munido de “força de vontade” para se destacar em mundo de quase 7 bilhões de pessoas demonstra, no mínimo, ingenuidade cega à própria presunção e às probabilidades.
Frente às evidências de que não alcançaram a grande mudança desejada, algumas pessoas permanecem frustradas e culpadas, e continuam alimentando a indústria das ervas daninhas: compram mais cursos de autodesenvolvimento. Outras pessoas, no entanto, parecem despertar: começam a desconfiar que o céu não é o limite e que os próprios esforços podem conter méritos pessoais, mas também podem ser esmagados por certos contextos.
Em nosso métier, como psicólogos, fornecemos ferramentas para que as pessoas possam empreender ações individuais em prol de suas melhorias. Entretanto, disponibilizar técnicas individuais sem explicar que o sofrimento psíquico não cabe em uma estrutura dicotômica de pensar, sem elucidar as possíveis limitações frente a certos contextos, eclipsando os impactos macrossociais nas vidas cotidianas e que o sofrimento, via de regra, não se deve 100% a ações individuais OU a fatores externos, mas que ambos nos influenciam – é análogo ao desserviço de charlatões online que pregam que “o céu é o limite”.
Compreender as causas multifatoriais de nosso sofrimento psíquico implica sair do pensamento dicotômico, entendendo a complexidade das relações micro e macrossociais, os tipos de poder que aí atuam e mais: lembrar que, histórica e estatisticamente, em relações de poder, algumas partes tendem a vencer - mas isto é papo para uma outra quinta-feira.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.