Gostamos de brincar de Deus. Em nossa ingenuidade, achamos que somos donos dos nossos destinos, subtraímos da equação da vida os acasos (bons e maus), o inexplicável e o desconhecido que habita em nós. Pode ser desolador compreender que nem tudo tem sentido e, assim, diante do absurdo, do inexplicável, tendemos a nos proteger em uma carcaça de racionalidade, buscamos explicações lógicas, causais, nos enchemos de certezas, convicções, julgamos e condenamos, segundo nossas convicções.
É quase automático buscarmos abrigo em nossa racionalidade, parece doer dizer “não tem explicação”, rasga por dentro quando nos magoam sem motivo aparente. E, diante de nossa impotência de compreensão, atribuímos sentidos aos atos alheios, acreditamos conhecer a intenção das pessoas, mesmo sem nunca ter estado na pele delas.
Achar que conhecemos as entranhas do coração de alguém é brincar de Deus onisciente. Tentar enquadrar a complexidade da vida na régua da racionalidade é negar a própria impotência, é brincar de Deus onipotente.
Neste jogo, até Deus é reduzido à simplicidade de nossa racionalidade. Alguns acham que sabem o que Ele quer, transferem a Ele seus próprios julgamentos, convicções e, claro, critérios de condenação. “Essa é a vontade de Deus”, afirma-se por aí com veemência. Então, Deus vira um tribunal que age segundo nossos próprios valores.
Brincar de Deus traz a ilusão das certezas - certezas sobre tudo, todos e sobre nosso próprio destino. Traçamos planos imutáveis, análogos a predestinações divinas que tornam os acasos, os ocasos e os absurdos em intercorrências inaceitáveis. “Como pode algo, que eu-deus não planejei, se colocar em meu caminho? Como pode, eu-onisciente, não saber que isso aconteceria? Como pode, eu-deus sabedor de todas as coisas, não querer mais seguir Meus próprios planos? Como pode, eu-todo-poderoso, desistir de uma carreira, de um relacionamento?”
Quando escuto alguém dizer “não desista nunca”, o alerta de detector de complexo de Deus começa a soar. Não desistiria simplesmente porque Eu-todo-poderosa planejei algo e, logo, os desígnios do meu eu-deus devem ser cumpridos a todo custo? Não desistiria mesmo que escolhas passadas hoje me doam, me machuquem, estejam esvaziadas de sentido? Para quem gosta de brincar de Deus, desistir é sinônimo de fracasso.
Afinal, é a evidência que nossa racionalidade, nossos planejamentos, são frágeis, que a vida é imprevisível. Desistir é a prova irrefutável que não somos Deus e, para alguns, isso dói. É preciso coragem para ser humano e desistir.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora