Cada sociedade, cultura e tempo histórico indicam o que, teoricamente, seria o papel do homem e o papel da mulher, ou seja, quais são as condutas e características aceitáveis ao suposto mundo “masculino” e “feminino”. Deste modo, os aludidos “papéis de gênero” acarretam, na atualidade, debates acalorados e afirmações questionáveis, como “meninos vestem azul, meninas vestem rosa”. E, em razão disso, podemos passar por situações inusitadas, que denunciam a assimetria de pequenas exigências cotidianas entre homens e mulheres.
Para fins ilustrativos, compartilho algo que me ocorreu há pouco tempo: infelizmente não tenho muitas habilidades motoras finas. É preciso muito esforço para que minha letra seja compreensível e não um garrancho; traçar uma linha reta em um papel pode ser algo desafiador e um pequeno tremor denuncia minha parca habilidade neste quesito. Como um espelho invertido, meu marido possui uma coordenação motora invejável – sua caligrafia é bela, sua habilidade para desenhar e pintar são notórias, dedilhar um violão parece algo tão fácil para ele!
Por causa disso, obviamente, a tarefa de cortar as unhas de nosso filho recém-nascido ficou sob a responsabilidade de meu esposo e não minha. Entretanto, a cada vez que, por algum acaso, vinha à tona que a mãe não cortava as unhas do filho, mas sim o pai, olhares estranhos surgiam. A habilidade de cortar as unhas de um recém-nascido não veio junto com meu aparelho reprodutor, não veio de brinde por eu ser mulher, mas, socialmente, é algo que está dentro do esperado de um papel de mulher, de um “papel de gênero”.
Por sua vez, os homens também são impelidos a performar certos papéis de gênero: a serem viris, provedores, inquebráveis emocionalmente e tantas outras coisas que, como cortar as unhas de um recém-nascido, não nasceram com os cromossomos XY, mas foram incutidas socialmente.
Entretanto, historicamente, o papel relegado às mulheres é desvantajoso se comparado ao dos homens. Desde a Antiguidade Clássica, apesar do brilhante legado filosófico, com nomes eternizados como Platão, Sócrates e Aristóteles, podemos constatar que o papel de gênero reservado às mulheres era apequenador, resumidas às suas funções reprodutivas e conjugais – bem ilustrada na irônica música “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque - “Elas não têm gosto ou vontade, Nem defeito, nem qualidade, Têm medo apenas”.
Compreendo que o histórico de opressões sofrido por nós, mulheres, assim como o papel de gênero a nós atribuído é, por vezes, pesado demais. Os índices de feminicídio são endêmicos e a realidade social está muito longe de ser algo igualitário em termos de gênero. Talvez, em resposta a tudo isso, cada vez mais mulheres têm denunciado as violências de gênero no cotidiano. Algumas comunicadoras se dedicam a nos educar sobre tal pauta e seus trabalhos são de utilidade pública, ajudam na construção de uma sociedade mais equitativa.
Entretanto, outras comunicadoras parecem se aproveitar de nossa dor histórica para disseminar discursos que em nada ajudam às mulheres, por exemplo: reduzir todos os homens a “boys lixos” é simplicista, reducionista e utiliza mecanismos de opressão que há anos tentamos eliminar. As novas coachs de relacionamento, muitas vezes, travestidas de profissionais de saúde mental, propagam hipergeneralizações: “nenhum homem presta”. Inclusive, se um homem for gentil com você, se você vive um relacionamento bom - “cuidado! Lá na frente ele vai mostrar as garras!”.
Os efeitos desses discursos começam a ser notórios: mulheres em hipervigilância, sendo bombardeadas da informação de que é preciso manter “olhos sempre abertos” e, caso elas passem por alguma situação de opressão, mais uma vez, há a culpabilização das mulheres, afinal, elas que não tiveram os olhos abertos o suficiente, elas que não compraram o livro ou o curso da coach de relacionamentos que te ensina sobre as “ciladas” de todos os homens.
Educar as mulheres sobre as prisões históricas às quais foram submetidas é necessário para a compreensão atual de supostos papéis de gêneros. Entretanto, estimular o pensamento obtuso, discriminatório e generalizante de que “nenhum homem presta” não nos ajuda enquanto coletivo e parece até estimular, no vetor contrário, uma violência que há tempos tentamos eliminar.
De fato, por vezes, é preciso ter os “olhos abertos”, não no sentido de estimular uma hipervigilância, mas a ponto de nos questionarmos: a quem interessa esse discurso de que nenhum homem presta? Talvez àquelas que monetizem com vendas de cursos e livros sobre “como se proteger” de homens e suas “ciladas”.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora