Abertura olímpica, a pobreza do debate e a intolerância coletiva

Os símbolos, cada um ao seu modo, são sagrados

Desde a abertura das olimpíadas, na sexta-feira (26), a esquete representada, em sua maioria, por drag queens e pessoas da comunidade LGBT+, repercute nas redes sociais e nas mídias em geral. Após inúmeras manifestações de desagrado, neste domingo, durante uma conferência de imprensa do Comitê Olímpico Internacional, Anne Dechamps, porta-voz das Olimpíadas de Paris 2024, esboçou um pedido de desculpas (disse lamentar ‘muito, muito mesmo’) às pessoas que se sentiram ofendidas na abertura dos jogos pela cena.

Infelizmente, nossa sociedade parece carecer de pensamento crítico, reduzindo a rica oportunidade de debate em decorrência da cena a um embate polarizado entre defensores de tal manifestação artística x ofendidos pela mesma, em face do qual nenhum dos lados parece disposto a refletir sobre o acontecido.

Como torcedores fanáticos, são incapazes de reconhecer as virtudes do outro time e as falhas das próprias ações.

De um lado, muitos dos arautos de uma suposta moralidade aproveitaram a oportunidade para disseminarem discursos transfóbicos. O ódio na fala de muitos que se posicionaram contra a manifestação artística vai de encontro aos ensinamentos de Cristo, apesar de muitos se autodenominarem cristãos. Pessoalmente, creio que se tivessem lido, ao menos uma vez na vida, os belíssimos Evangelhos e os ensinamentos de Jesus aí contidos, certamente, adotariam outro tom, lembrariam que não são eles a guardarem as chaves do céu e que, inúmeras vezes, Jesus quebrou regras e protocolos de seu tempo, acolheu àqueles que a sociedade rechaçava.

Outras pessoas minimizaram a questão dizendo não se tratar de uma referência ao quadro A Última Ceia, mas à pintura do holandês Jan van Bijlert, “A Festa dos deuses”. Em uma cegueira coletiva, negaram que, na pequena encenação, podemos ver referências a ambas as obras e, de todo modo, a obra de Bijlert foi pintada por volta de 1635, ou seja, mais de cem anos depois do quadro de Da Vinci, datado de 1498 e, podendo, portanto, ter inspirações do mesmo. Neste ângulo do debate, a riqueza e a polissemia da arte passaram despercebidas.

Houve ainda aqueles que defenderam ferrenhamente a manifestação artística em questão, se referindo a todos aqueles que dela se desagradaram como ‘retrógrados’, ‘de extrema-direita’ e ‘conservadores’, ignorando, por completo, que é possível sentir certo desgosto pela cena por outros motivos que não uma inclinação pessoal ao proselitismo ou por um alinhamento com a agenda de discriminação à comunidade LGBT+.

Para compreender o desagrado vindo de pessoas razoáveis é preciso, primeiramente, não ter uma mente limitada, polarizada entre bons x maus, oprimidos x opressores - somos mais de oito bilhões no mundo, nem todos cabem em categorias diametralmente opostas. É preciso ainda entender que o quadro de Da Vinci, ao longo dos últimos cinco séculos, transcendeu seu valor como bela arte e se tornou, no imaginário coletivo, um símbolo do Cristianismo e das mais diversas religiões daí advindas - e isto é algo sério.

Diferente de outros animais, o ser humano é um ser simbólico – alguns objetos adquirem um valor que ultrapassam seu sentido original, dizem de uma história pessoal e coletiva. Os objetos que adquirem um valor simbólico não podem ser monetizados, dinheiro nenhum no mundo pode comprar e isso é o ápice do valor em um mundo capitalista. Talvez você tenha um objeto de um parente já falecido, algo da sua infância, um talismã ou mesmo sua aliança de casamento com seu grande amor que tenham se tornado simbólicos na sua existência e que você jamais irá se desfazer deles, ainda que lhe oferecessem uma fortuna por eles. Objetos simbólicos dizem de nossa história de vida, se tornam parte de nós mesmos e dói quando mexem neles.

Assim, o quadro A Última Ceia se tornou simbólico para milhões de pessoas, faz parte da história coletiva da comunidade cristã ainda que, talvez, a cena real de Jesus e seus apóstolos sequer tenha acontecido como foi pintada por Da Vinci. De tal modo, parodiar este símbolo pode sim ser motivo de ofensa pessoal para muitos. Não se trata necessariamente de um preconceito contra a comunidade LGBT+ (apesar de sabermos que alguns adentraram nesse debate por puro preconceito), afinal, ainda que a cena tivesse sido representada por homens e mulheres cis, naquele contexto de entretenimento, o sagrado se tornaria profano, continuaria sendo ofensivo.

Em um mundo plural e em busca de ser democrático, os símbolos devem ser respeitados e conservados. Entretanto, creio que a imposição dos símbolos de um determinado grupo à coletividade, por vezes, provoca um efeito reverso: não uma maior aceitação desses símbolos, mas um ressentimento, uma vontade de destruição e de zombaria, pura iconoclastia sem um sentido mais elevado.

É preciso assumir que no Brasil há, com frequência, a imposição em espaços públicos de símbolos cristãos, especificamente católicos. Como muitos nordestinos, sou devota de Maria, encontrei Nela o colo acolhedor de uma mãe, mas não posso concordar com as inúmeras praças em meu Estado (Ceará) com imagens de Maria, afinal, isso pode ser um ultraje a alguém com uma fé divergente da minha, que enxerga Maria com outros olhos.

Como a maioria dos brasileiros, sou cristã, mas não posso concordar que crucifixos sejam expostos em repartições públicas, afinal, esta não é a fé de todos os brasileiros - e a laicidade é garantida pela Constituição vigente. Do mesmo modo, posso não me sentir à vontade que símbolos de outras religiões sejam impostos à coletividade, mas, nem por isso, poderia me autorizar a parodiar estes símbolos pelos quais não tenho nenhum afeto, mas que são profundamente importantes para pessoas de outras religiões.

Os símbolos, cada um ao seu modo, são sagrados. Todos merecem ser conservados, respeitados e guardados para aqueles que os consideram preciosos. Pode ser um idealismo, mas ainda acredito que podemos conviver com as mais diversas religiões, ideologias e modos de ser, desde que sejamos norteados pela empatia, compreendendo que o que é valoroso e sagrado para o outro, não merece ser banalizado (muito menos parodiado).

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora