Tom Zé: um gênio muito além do futuro

Depois de 86 primaveras, a cabeça do compositor baiano segue inquieta buscando um novo poucas vezes compreendido

Não é novidade para quem me acompanha semanalmente que retorno aos meus artigos dominicais após o tratamento de uma depressão dura. Falo isso, pois os meus primeiros dias de tratamento foram fundamentais na minha vida e em uma nova criação naquilo que projeto ser.

Em meio a dias difíceis, mesmo sendo jornalista, desapeguei das notícias e passei a viver mais em um mundo paralelo e no dia que resolvi ligar a televisão, me deparei com a morte do cineasta Jean-Luc Godard, um dos reinventores do cinema mundial que ousou na sua arte e até na forma de morrer.

Aquele fato me deixou mais perplexo do que eu já estava durante aquelas longas semanas. É notoriedade que os “loucos” estão indo embora e o mundo segue o caminho da chatisse cruel. Momentos depois do anúncio da morte do francês, o stream no qual estava ouvindo música no momento me levou, por ordem aleatória, à música “Augusta, Angélica e Consolação” composta por Tom Zé, o que me emocionou de forma profunda.

Aquele samba paulista podia se inspirar no nosso eterno Adoniran Barbosa, mas ia além, era uma mistura de sons e rimas paulistas que resultava em algo muito maior do que era simplesmente ouvido. Aliás, e visto também. Já que a capa do disco de 1973, nos árduos anos de censura pelo regime militar, mostrava um ânus com uma bola de gude no meio de todos os olhos.

Confesso a vocês que minha visão do compositor baiano era de uma pobreza tão absoluta que tenho até vergonha de escrever este artista agora. Em um dos momentos mais profundos do meu declínio, descubro um dos maiores gênios das artes deste planeta que, não por acaso, é brasileiro e se chama Tom Zé, que no próximo dia 11 de outubro completa 86 anos de vida, mas com um olhar de alguém que ainda nem nasceu.

Senhor Cidadão

Detesto fazer essas matérias biográficas, acho chulas e sempre beirando à mesmice. Se fosse fazer isso com o baiano de Irará, ainda ia ser pior. Então, sem pudores, me rasgarei no Tom Zé além da Tropicália, do lixo, do luxo, dos celtas, dos antropofágicos e do Brasil. Escreverei sobre um gênio modesto e reconstrutor de um país que ainda nem sequer existe. 

Depois de anos de ostracismo, nosso artista ganha reconhecimento – pouco, diante de sua dimensão. Com biografia, mais um novo álbum Língua Brasileira e, agora, eleito a ocupar cadeira nº 33 em sucessão a Jô Soares na Academia Paulista de Letras, o que é surpreendente e evolutivo para a instituição.

Tom Zé afirma em entrevistas que quando descobriu a música ficou fascinado, mesmo se achando um cantor ruim e um compositor medíocre. E que bom! Pois foi esse olhar –ao meu ver equivocado – que tirou das suas entranhas uma canção diferente de tudo já visto, até mesmo do Tropicalismo, movimento que lhe propagou para cenário nacional.

Olhar para Tom Zé é pensar no amanhã e na quebra de tudo o que havia sido programado como música, por isso sigo dizendo que ele vai além. Prova disso é o Estudando Samba, lançado pela gravadora Continental, em 1976, disco que atraiu os olhares de David Byrne décadas depois, tirando o artista de um certo ostracismo Pós-Tropicália, quando este teve mais palco nas instituições universitárias de São Paulo e pouco reconhecimento no país.

Se o caso é chorar

O que me assusta em Tom Zé é essa inquietude que vai além de seus conterrâneos. A inteligência rompe os padrões desde a semiótica de Peirce ao catolicismo do Papa Gregório primeiro, bebendo da contracultura e dando um pulinho na Bossa Nova e no Baião. Ninguém pode supor o que o músico prepara para os próximos 80 anos, mas sabemos de sua ansiedade pelo futuro construindo o hoje.

Ele entende a linguagem do Brasil, desde a do sertão trazida por Guimarães Rosa e Euclides, aos dizeres sofisticados da literatura de Machado de Assis. Ainda assim, na juventude, em um Festival, foi acusado de plágio na música “Silêncio de Nós Dois” sendo plágio do Garcia Lorca, o que não tinha sentido.
 

Aquilo, ao invés de acuar o compositor, aguçou para uma nova composição, essa sim, sendo toda plagiada com a harmonia do Estudo nº 2 de Chopin, com a primeira parte da letra inspirada na confusa dor de cotovelo de Antônio Carlos e Jocafi, e a segunda parte somando partes de clássicos da dor de cotovelo, em resumo: outra competição ganha com “Se o caso é chorar”.

Grandes nomes na música têm muitos e vários gênios ganham reconhecimento. Tom Zé, infelizmente, merecia mais destaque na mídia, ainda assim, tudo isso se torna indiferente à qualidade do seu trabalho, o que o faz maior ainda. O baiano ganha cadeira na academia, biografia e discos novos, mas devemos ir além, e tentarmos adentrar no seu mundo psicodélico com riscos de gostar e nunca mais querer sair.