Os dizeres “Rasgar-se e remendar-se”, de Guimarães Rosa, é a primeira frase que me vem à cabeça para escrever esse texto. Mesmo que o espaço dominical sirva para abordar assuntos ligados ao cancioneiro popular do nosso Brasil, me colocar como protagonista da coluna de hoje é, de alguma forma, também exaltar a música em plena intensidade.
No dia 14 de janeiro de 2022, mais especificamente às duas da madrugada, acordei com uma tosse terrível e uma dor no corpo estranha. O País estava passando pela terceira onda da Covid-19 e o diagnóstico da doença me veio na mesma manhã, depois de uma árdua luta por testes em várias farmácias.
A palavra “Positivou” soou um choque enorme, mesmo que já previsse o resultado. Custava assimilar a ideia de ter me contaminado depois de tanto tempo lutando e noticiando sobre o vírus. Restou enfrentar a realidade, fui para o isolamento e vivi os sintomas que oscilavam no transcorrer das horas. Felizmente, vacinado com as duas doses, continuei em casa e depois de dez dias a tão sonhada alta chegou.
Voltar à rotina após a Covid-19 foi desafiador. Perdi peso, sentia muito cansaço e fadiga muscular. O corpo parecia não corresponder ao que a cabeça comandava, tudo ecoava com certa dramaticidade, quando na verdade a mente é que havia sido mais bombardeada pelo vírus, mas eu não sabia.
Braços e pernas magros, olhos baixos, falta de disposição…Me sentia morrendo todos os dias. As refeições foram diminuindo de frequência e quantidade, a memória que decorava poemas com facilidade começou a falhar. O anoitecer, sinônimo de descanso para muitos, se tornou uma tortura com a insônia que desesperava. Me senti frágil e vulnerável como nunca fui na vida.
Não conseguia falar o que passava dentro de mim. Era difícil decifrar esse enorme buraco que machucava o peito, mesmo no divã da psicanálise, que sempre me causou sensação de conforto. Daí, mais uma vez, surge a música como catarse do que clamava lá dentro.
O Silêncio das estrelas
Para quem teve seus dias de boemia, as madrugadas já não eram as mesmas. Passava horas olhando para o céu escuro da sacada de casa, e a voz do Lenine cantava no ouvido a minha solidão, o silêncio das estrelas e a ilusão de quem pensava ter o mundo nas mãos como um Deus, mas sempre amanhecia mortal. Assim como na letra, eu via uma procura que não havia fim, ao mesmo tempo em que me olhava no espelho e me questionava o que eu procurava, afinal.
Mil perguntas pareciam se digladiar na minha alma. Meus sentimentos me sufocavam de tal forma e tanto que me levaram a uma enfermaria de um hospital frio com sintomas de ataque cardíaco em um duro domingo. Naquela mesma noite, após tantos tipos de exame, mais um diagnóstico veio para impactar: “tudo aquilo seria uma crise de ansiedade”.
Uma outra lacuna me enchia de medo do futuro e este eu já não encontrava quando observava meu reflexo no espelho. Outra vez ecoava na minha mente a música de Lenine com Dudu Falcão. Eu desejava fugir, a caminhada parecia não fazer mais sentido. Só queria um sinal, uma porta para o infinito, o irreal, e ser como as estrelas que brilham em paz.
Admitir minhas condições, por mais que parecessem óbvias, não foi fácil. Quando que eu, Luã Diógenes, que sempre fui o rei das piadas e causos de mesa de bar, poderia ter depressão? Jamais! É, mas o tempo corre, eu parecia me despedir diariamente dele e, por mais forte que seja a ideia, era essa a sensação.
Narrar essa história ainda dói, mas só posso contar tudo isso graças à bravura de minha mãe, que se fez leoa zelando por sua cria, na inversão dos papéis da vida adulta, me acalentando e me fazendo voltar a respirar. Sua atenção foi tanta que me deu a liberdade de escolher a hora certa de admitir que precisava de tratamento..E esse dia chegou.
Paciência
Procurar um acompanhamento psiquiátrico talvez foi a quebra de um dos meus maiores preconceitos. Aquele momento, quase que solitário da primeira consulta, me lembrou o desamparo da minha caminhada para a sala de vestibular. O que seria de mim depois daquilo? Naquela hora eu entrava em outra letra na canção do grande Lenine, também com Dudu Falcão, e começava a entender que a vida não para.
O atendimento foi mais nocivo do que parecia. Claro, medicamentos fortes foram prescritos, ainda assim o tempo acelerava e pedia pressa, eu agora me recusava, fazia hora e ia na valsa. O momento me pedia “Paciência”, justamente o título da canção que se tornou meu mantra diário.
Essa tolerância era exigida pelo mundo e esse acolhimento eu precisava dele, aliás, ainda preciso, pois tudo é processo e ainda há muito que percorrer. Entrei na compreensão de que eu me pedia mais calma, meu corpo me exigia mais alma.
Aos poucos fui entendendo que minhas sequelas depois da contaminação do vírus não passam de uma, a neurológica, nomeada por várias pesquisas de “Ansiedade/Depressão Pós Covid” causada pela variante Ômicron.
Aos poucos estou melhorando, almejando novos sonhos, projetos, viagens e muita cura de todo mal, aliás, ela me vem todos os dias quando fecho os olhos antes de dormir e agradeço pela doença. Parece ilógico, mas foi a depressão que me despiu de tantas máscaras e me fez mais humano do que eu imaginava ser.
O caminho ainda é longo, mas sigo agora de peito aberto e disposto a percorrê-lo. Lentamente, me dispo de vestes que já não me cabem mais, inclusive, escrever essas palavras aqui, caro(a) leitor(a), é romper com mais uma barreira e expor (entre lágrimas) para você que me acompanha semanalmente o que posso oferecer de melhor, a minha verdade e ela também é música.
São tantas descobertas! Muitas novas possibilidades de rever o mundo e a mim mesmo. Existem enigmas para serem ainda decifrados e talvez nem sejam, mas várias certezas já foram traçadas como metas.
Na última semana, minha psicanalista me perguntou se eu tinha mais medo de morrer ou de viver. A sessão encerrou sem resposta, mas o que ela queria que eu entendesse eu já havia aprendido com os discos: “a vida é tão rara”.