A “Bossa Nova” é o grande marco da história musical brasileira. Mesmo que outros gêneros possam ter vindo antes, e conquistado até maior popularidade, o movimento inovou e é símbolo do nosso cancioneiro em todo planeta. Pensar que essa apoteose começou na sala de um apartamento carioca e os grandes compositores eram jovens despretensiosos que só queriam apresentar suas canções, parece inacreditável.
Como o futuro (e nem o passado) são feitos de possibilidades, o que acabei de narrar é fato e foi assim que a “Bossa Nova” surgiu. O logradouro tão importante que tinha a janela de visão para o Corcovado era de ninguém menos que Nara Leão, artista que se tornaria octogenária neste 2022.
Para resgatar esse nome tão importante da nossa cultura em muitos aspectos, a Globoplay lançou a série documental “O canto livre de Nara Leão” e a força da mulher que modificou muito a música e os hábitos de uma geração. Os cinco episódios do trabalho irretocável recebem a direção do cineasta e roteirista Renato Terra e foi produzido pela Conserva.Doc.
A reunião de um acervo riquíssimo de apresentações da cantora mescla com depoimento de astros como Chico Buarque, Roberto Menescal, Maria Bethânia, Nelson Motta, Paulinho da Viola e muitos outros. Ele reapresenta ao público esse nome tão importante e merecedor de todos os aplausos possíveis.
Quem para e ouve o canto sofisticado, sutil e doce de Nara Leão, não imagina a grandiosidade como profissional e ser humano que ela significa para seu tempo. Aliás, a capixaba consegue ser atemporal ainda hoje diante de um país que segue insistindo em ignorar o passado.
“Uma Leoa”
Se a tigresa pode mais que o Leão, imagina uma leoa?! Mesmo com o trocadilho não tão criativo, o sentido da frase é verídico e explico os variados motivos. Nara Lofego Leão era indomável, literalmente, dona da situação nos mais diversos segmentos de sua vida e foi assim até o fim, mesmo quando um câncer severo no cérebro a levou deste plano aos 47 anos em 1989.
Apesar de uma vida breve, a artista sempre foi intensa. Como já afirmei anteriormente, o apartamento em que morava junto aos pais foi um dos pontos de formação da Bossa Nova sendo ela chamada pela imprensa da época de “Musa” do movimento. Sua voz parecia comungar com aquela batida de violão sofisticada, tornando algo irretocável.
Ainda que representasse tanto o estilo, após término de romance com um dos integrantes do grupo, o compositor Ronaldo Bôscoli, Nara preferiu romper com o movimento mas não se sentiu intimidada a parar, ao contrário, se reinventou novamente e bebeu de outros grandes rios da música brasileira.
Nada mais adequado para aquela moça tão destemida do que expressar em suas artes as ideologias no qual acreditava. Foi nesse contexto que ingressou em 1964 no show “Opinião”. O ano do espetáculo diz muita coisa, início da Ditadura Militar, e claro que todos gritos de liberdade ali apresentados foram contra o Regime.
Falar dessa apresentação teatralizada de Nara leva a dois momentos comoventes da série. O poema que Carlos Drummond de Andrade fez chamado “Não deixe que prendam Nara Leão” mostra a pluralidade de almas que aquela mulher atingia. Além disso, trazer novamente a imagem do maranhense João do Vale faz pensar em um Brasil que ficou perdido no tempo devido aos preconceitos, mas que jamais perderá a genialidade.
Parcerias eternas
Outras conexões foram sendo feitas, uma das mais valiosas seria da carioca com Chico Buarque de Hollanda na interpretação singela da marcha “A Banda”. Além do compositor, outros nomes foram vistos por Nara, como o do jovem cearense Raimundo Fagner, que também tem depoimento no trabalho documental.
A personalidade da “Musa da Bossa” era tão forte que rompendo com o que havia defendido de intelectualizado nos anos anteriores, ela resolve “Mandar tudo para o inferno” e gravar Jovem Guarda. Claro que as polêmicas foram as mais diversas! Enquanto uns marchavam contra a guitarra elétrica, Nara se debruçava lindamente no repertório do Roberto Carlos e Erasmo.
Destemida não só nas artes, mas na vida pessoal. Seus relacionamentos também são explorados na série, como a união com Cacá Diegues contando bem humorado que o pedido de casamento partiu da jovem. Nesse ponto, temos que ressaltar também o resgate do Cinema Novo e mais utopias que pretendiam mudar o mundo.
Nem tudo foram flores! E a partida precoce da artista após uma luta tão terrível prova muito bem isso, ainda assim, ela não quis parar e seus últimos trabalhos foram sucessos em vários continentes deste planeta.
A série brilhantemente lançada na Globoplay só ressalta o que o Brasil já sabe mas parece fingir ignorar: a liberdade é que nos move! Nara Leão veio para mostrar isso, foi de Caymmi à Cartola, e exclamou que barreiras servem para serem superadas, mesmo que seja preciso suor e sangue.
Assistir cada episódio do trabalho documental é navegar em aulas de encorajamento para lutar por uma nova nação e a música também é caminho! Nara Leão sempre estará presente e por tão inquieta seguirá à frente do seu tempo mesmo em um futuro distante.