Que histórias contam essas fotos antigas, desprezadas e esquecidas?

Um de meus passatempos favoritos é frequentar feirinhas de velharias e antiguidades. Há uma bem próxima aqui de casa. Funciona todo terceiro sábado do mês, na praça Velásquez, uma das mais aprazíveis do Porto. Quando morava em São Paulo, costumava ir à da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, também aos sábados. Passo direto pelos objetos de maior preço, volume e suntuosidade. Gosto mesmo é de perambular pelas barraquinhas apinhadas de miudezas, badulaques, ninharias.

As que me chamam mais atenção são as que vendem fotografias antigas. Sempre há uma delas em toda feirinha do gênero. Oferecem imagens que parecem arrancadas de velhos álbuns de retrato, remanescentes de acervos particulares desfeitos, refugos domésticos de alguma família que, por algum motivo, desfez-se de tudo o que um dia pertenceu a pais, tios e avós. Cristais, louças, tapetes, quadros, pratarias, móveis, lustres, estes vão para os grandes antiquários.

As fotos, sem nenhum valor monetário digno de nota, desprezadas igualmente em sua cotação afetiva, agora jazem ali, acondicionadas a esmo, embaralhadas e amontoadas em caixotes de madeira e papelão.

Contemplo aqueles rostos antigos e anônimos em tom sépia, alguns ainda nítidos, outros esmaecidos pelo tempo. Um jovem casal em pose rígida diante da câmera, por exemplo. Ele, de bigodes retorcidos para cima e cabelo penteado para trás; ela, de vestido rendado e laço de fita à cintura. Um garotinho de expressão amuada, como se estivesse prestes a explodir no choro, não muito à vontade na roupinha de marinheiro. Uma velha senhora de coque e olhar soturno, pálpebras caídas, olheiras profundas. Uma mocinha a esboçar meio sorriso, pintinha em cima dos lábios, covinha no queixo. O senhor de ar empavonado, gravata borboleta, a barba grisalha emoldurando o rosto de enormes bochechas.

Um ou outro desses retratos ainda traz qualquer inscrição a nanquim, desenhada com caligrafia caprichada sobre um cantinho da própria imagem ou, como é mais comum, no verso. Às vezes uma pequena dedicatória; noutras, uma assinatura, seguida de alguma alusão a uma cidade, um mês, um ano, um instante qualquer do passado. Quase sempre, porém, o que há é a mais completa ausência de informações. Nenhuma indicação de data ou procedência. Gosto, particularmente, dessa indefinição, desse apagamento de pistas.

Fantasio então histórias para cada um dos retratados. Imagino-lhes nomes, invento-lhe origens, atribuo-lhes narrativas, concebo-lhes destinos. Cogito amores e desavenças domésticas. Presumo razões para o extravio das imagens.

Em que momento essa ou aquela foto foi desgarrada do álbum original a que provavelmente pertencia? Por qual motivo foi extirpada de alguma caixinha pessoal de lembranças? Como vieram parar nessa montoeira de imagens amareladas, descartadas pelos proprietários, abandonadas talvez por eventuais herdeiros? Que caminhos insondáveis percorreram até serem vendidas, a retalho, em uma banquinha de cacarecos?

Quantas paixões desfeitas, traições, alegrias, intrigas, dores, sorrisos, arrebatamentos, tragédias e desesperanças devem conter essas imagens, agora que suas histórias parecem estar irremediavelmente perdidas para sempre? Quantas solidões, abandonos, desencontros, corações partidos, nascimentos e mortes encerram? Que pessoas eram aquelas, para onde foram com seus paletós de casimira, golas bordadas, sapatos de verniz, brincos de ouro, suspensórios, saias rodadas?

Como terá envelhecido a menina de guarda-sol estampado ao ombro, o meninote sentado ao velocípede, o rapaz de ar pensativo e mão ao queixo, a matrona com o bebê no colo? Que esperanças, medos, paixões, segredos e interditos dissimulam tais poses, congeladas no tempo, a exibir calculada respeitabilidade e recato?

Para onde vão os sonhos e projetos de vida, as memórias e as saudades, quando o que resta de tudo isso são apenas imagens pálidas, anônimas, devassadas em sua privacidade ao serem expostas em uma caixa de papelão, bem ao lado de coleções desconjuntadas de velhos cartões-postais, bibelôs de louça barata, brinquedos de corda, discos de cera e outras tantas traquitanas e quinquilharias? De que cruel substância, afinal, é feito o esquecimento?

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.