É possível ensinar alguém a escrever bem?

Quando soube que estou preparando um curso online sobre a escrita biográfica, um amigo me perguntou, um tanto quanto cético: “Mas é possível mesmo ensinar alguém a escrever bem?”. Respondi-lhe: sim e não.

Por certo, um escritor não se fabrica do nada. Da mesma forma que não se improvisa, de uma hora para outra, um músico, um bailarino, um pintor, um marceneiro, um ourives, um chefe de cozinha, um matemático, um pedreiro, um jogador de futebol.

Nem o melhor professor do mundo conseguiria me ensinar a tocar piano relativamente bem. Adoro música, mas tenho um ouvido burro e padeço da mais completa ausência de coordenação motora. Jamais saberia conciliar acordes e melodias alternando entre as mãos direita e esquerda.

Estabanado que sou, também nunca demonstrei a mínima habilidade com uma bola nos pés. Sou daqueles brasileiros atípicos, que não consegue bater um mísero escanteio. Do mesmo modo, sempre fui um colossal fracasso com algarismos e expressões algébricas.

Reconheço minhas limitações. Mas, se até um dia desses não sabia sequer fritar um ovo, agora me arrisco a pilotar um fogão com razoável competência. Tornei-me especialista em moquecas, paellas e peixes ao forno. O pessoal aqui em casa, pelo menos, não reclama. Elogia e até repete o prato.

Até perto dos quarenta anos, guiar um automóvel parecia-me tarefa sobre-humana: como conciliar três pedais, um volante e uma alavanca de câmbio – ou seja, cinco instrumentos simultâneos – se não sou um polvo e, em vez de múltiplos tentáculos, só tenho dois pés e duas mãos? Pois hoje dirijo com prazer e, acreditem, sem provocar maiores rebuliços no trânsito.

Para desenvolver a competência da escrita, não há de ser muito diferente. É preciso, óbvio, algum talento ou predisposição natural. Porém, ainda mais necessário é o desejo sincero de trabalhar com as palavras.

Aptidão e vontade não podem ser ensinadas; técnicas, sim.

No caso das narrativas de não ficção em geral, e das biografias em particular, a primeira providência a tomar é treinar o olhar de investigador: saber manusear documentos e fazer-lhes as perguntas certas, para extrair deles coloridos e detalhes significativos.

O historiador italiano Carlo Ginzburg comparava o ofício de pesquisar o passado com o de um detetive. A partir de pistas, indícios, sinais, conseguir reconstruir cenas e cenários. Portanto, trabalhar com arquivos de forma crítica e imaginativa – não confundir, aqui, imaginação com ficção – é ponto essencial. Não desprezar nenhum tipo de fonte histórica – cartas, memórias, charges, músicas, discursos, imagens, inquéritos, inventários, testamentos, registros civis, notícias de jornal etc. –, idem.

Pois a tão badalada “escrita criativa”, no caso específico de narrativas de não ficção, pressupõe uma pesquisa igualmente criativa, perfeitamente possível de ser aprendida e aperfeiçoada. Isso desde a leitura preliminar das fontes secundárias ao garimpo nas hemerotecas, da forma de condução de entrevistas ao manejo de fundos documentais, da utilização de recursos audiovisuais às incursões in loco nas paisagens da trama.

O maior desafio, contudo, é mesmo organizar todo o conteúdo da investigação em um texto coerente, denso e, ao mesmo tempo, atraente ao leitor. É aí que entra a habilidade – que, sim, também pode ser adquirida e aperfeiçoada – de se saber contar uma história. Manejar o tempo e o espaço, construir pontos de vista múltiplos e antagônicos, trabalhar descrições de ambientes e personagens, arquitetar ganchos e gatilhos narrativos.

Quanto mais fecundos forem os resultados da pesquisa, mais elementos o biógrafo terá para a subsequente carpintaria do texto. Só consigo começar a escrever o primeiro capítulo de uma biografia quando, depois de exaustiva investigação, consigo quase visualizar o biografado diante de mim, com seus trejeitos, idiossincrasias, modos de falar, formas de agir. Quando quase consigo sentir os cheiros, sons, sabores, cores e texturas do tempo em que ele nasceu, viveu e morreu.

Virginia Woolf perguntava se a biografia poderia ser considerada uma arte, já que o biógrafo, por não dispor da liberdade criativa do ficcionista, estaria manietado pela documentação factual. “Poucos poetas ou romancistas são capazes do alto grau de tensão proporcionado pela realidade”, ela ponderava.

“Mas, praticamente qualquer biógrafo, se ele respeita os fatos, pode nos proporcionar muito mais do que um fato para adicionar à nossa coleção. Ele pode nos oferecer o fato criativo; o fato fértil; o fato que sugere e gera”.
Virgínia Wolf

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.