Escrevo esta crônica em uma bela biblioteca, situada no alto de uma verdejante colina, a cerca de duzentos metros das margens do rio Tâmega. Tudo aqui em volta tem séculos e séculos de história. Cada pedra, cada vista, cada ladeira, cada curva do caminho, tudo foi testemunha de apogeus e declínios, vitórias e derrotas, êxitos e ruínas.
Estou na cidade portuguesa de Amarante, no exato local em que, no século XIII, dizem ter existido uma ermida (pequena igreja), fundada, ao que se calcula, em algum momento entre 1224 e 1272, pela infanta D. Mafalda, filha de D. Sancho I, o segundo rei de Portugal. Muito do que se conta a respeito daquele templo primitivo deriva da tradição oral e de suposições com base em documentação fugidia. A maioria dos fatos perderam-se nas brumas do tempo.
O que se pode afirmar com certeza é que, pouco mais tarde, ainda na Idade Média, aqui progrediu o mosteiro de Santa Clara, que chegou a abrigar mais de cem religiosas. Mas o convento de freiras mendicantes foi destruído no início do século XIX, em 1809, por um grande incêndio, quando o exército de Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica. Só a igreja escapou da fúria das chamas.
Após a retirada das tropas francesas, o mosteiro foi sendo lenta e parcialmente restaurado, pedra sobre pedra, até pelo menos 1827. Porém, a construção entrou mais uma vez em declínio não muito tempo depois, quando em 1834 se proibiram novas admissões de freiras às ordens religiosas no país, na esteira da consolidação do regime liberal – isso após a guerra civil que opusera absolutistas e constitucionalistas.
Quando a última religiosa do lugar morreu, em 1862, aos 73 anos de idade, o prédio ficou de novo abandonado. A propriedade acabou incorporada pelo reino e posta à venda, em hasta pública, no ano de 1866. Destituída da função original, a igreja foi profanada, imagens e obras sacras se perderam para sempre.
Na posse de diferentes proprietários, que o transformaram em residência senhorial, o prédio do antigo convento – que passou a ficar conhecido como a Casa da Cerca, em alusão à cerca de pedra que havia no local – sofreu seguidas demolições e descaracterizações, perdendo a maior parte de sua típica arquitetura monástica. A igreja, já arruinada, veio quase toda abaixo. A torre do sino caiu na virada do século XX.
Somente em 1974, após o fim da ditadura salazarista, o imóvel e os escombros remanescentes foram declarados, por decreto, local de interesse público. Decorridas outras duas décadas, em 1993, o prédio foi enfim adquirido pela Câmara Municipal de Amarante, que decidiu transformá-lo em biblioteca e arquivo, inaugurados em 2003.
Equipes de arqueólogos procederam a escavações e a trabalhos de desmonte, limpeza e recuperação. Os tetos das diversas salas, em estuques decorados com frisos em forma de folhagem, foram mantidos intactos. À estrutura primitiva do edifício, construído em pedra, acrescentaram-se detalhes arquitetônicos internos, adequados às novas funções.
Escrevo diante de janelões de vidro, que deixam entrar uma explosão de luz natural – e permitem uma visão panorâmica da paisagem em torno.
À minha frente, nas prateleiras das estantes, observo as lombadas dos livros cheios de história. O silêncio só é quebrado de quando em quando, pelas badaladas dos sinos da igreja de São Gonçalo do Amarante, logo aqui vizinha. Lá fora, os telhados dos brancos casarões coloniais torram ao sol do verão português.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor