Não, minha cara ex-amiga, não podemos continuar amigos, nem lá no Facebook nem aqui na vida real. Sinto muito. Amigos meus não fazem arminha com a mão, nem muito menos tripudiam da morte de alguém, alvejado por arma de verdade, no dia do próprio aniversário de cinquenta anos.
Amigos meus não fazem piada de atentados terroristas, não acham graça de bombas caseiras espalhando fezes, urina e veneno. Amizade, minha cara ex-amiga, pressupõe afinidades, conexões, empatias. Comunhão de interesses, sintonia de afetos.
Entre amigos, as diferenças são bem vindas, os modos de pensar não precisam ser idênticos. Você torce Fortaleza; eu, Ceará. Você se diz conservadora; eu sou progressista. Você é de direita; eu, de esquerda. Até aí tudo bem. As assimetrias nunca impediram nossos abraços a cada reencontro.
Mas, convenhamos, há de se ter o mínimo de humanidade, uma dose que seja de compaixão para com a dor e a tragédia alheias. Você se diz cristã, cidadã de bem. Deus me livre desse seu cristianismo e da sua benquerença.
Você também se diz patriota, nacionalista. Seu avatar nas redes insociáveis é uma bandeira verde e amarela. Ainda assim, ignora o desmonte de um país inteiro, a degradação ambiental, a morte de indígenas, o garimpo ilegal, o estrangulamento das universidades públicas, a perseguição aos artistas, o sucateamento da saúde. Finge não ver o desmanche do Iphan, o esvaziamento da Funai e a ruína programada dos demais órgãos de preservação e controle.
Você filiou-se a uma seita desumana. Não quis tomar vacina, fez propaganda gratuita da cloroquina e até achou graça quando aquele sujeito abjeto, em tom de gracejo infame, simulou a falta de ar de um doente de Covid.
Você faz vistas grossas para o escândalo colossal do orçamento secreto, das emendas do relator, dos documentos colocados sob cem anos de sigilo. Você releva rachadinhas e rachadões. Espalha fake news, semeia desinformação.
Você, minha cara ex-amiga, se tornou uma pessoa má, rancorosa, ressentida. Agora deu para relativizar a ditadura e até defender a tortura. Diz que é a favor da vida e prega a proliferação das armas. Você bate palmas para quem quebrou a placa com o nome de Marielle. Quando Dom e Bruno morreram, assassinados, você pôs a culpa nas próprias vítimas.
Não te reconheço mais. Ou talvez não te conhecesse direito antes. De todo modo, vamos ter que dar um tempo em nossa amizade. Não sei se a sociopatia tem cura. Sinceramente, não lhe desejo o mal. Passe bem. Bem longe de mim.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor