Tento, tomado pelo terror e pela angústia, vislumbrar a cena. A horda de fanáticos, vestidos com a camisa da seleção brasileira e enrolados na bandeira nacional, depois de deixar atrás de si o rastro de destruição, chega diante do quadro de Di Cavalcanti. Insensíveis, não se comovem com o belo. Na tela, de tocante delicadeza, quatro mulheres aparecem em primeiro plano — ao fundo, ao longe, vê-se barcos a vela e a figura de pescadores reunidos na praia.
Uma das mulheres toca violão, uma segunda trata os peixes recém-pescados, as outras duas parecem conversar. Perto delas, dois pombos. O cenário, harmonioso e colorido – o verde das folhagens, o azul do céu, os entretons nas estampas dos vestidos —, passa uma atmosfera de calma e sossego.
Os bolsonaristas ensandecidos olham para a pintura e, ofuscados pela própria ignorância, embotados pela absoluta falta de conhecimento e sensibilidade, decidem profaná-la. Um deles (ou, talvez, alguns deles) saca(m) a faca, o punhal ou qualquer outro objeto perfurante, e desfere(m) golpes na tela, rasgando-a, esburacando-a, dilacerando-a. Não admitem a graciosidade, não sentem nenhuma empatia pelo belo, não se reconhecem em nada de sublime, obscurecidos que são pela estupidez, pela bestialidade e pelo ódio.
Para eles, a arte e a cultura, o primor e a inventividade, a suavidade e a imaginação, tudo que represente o talento e o engenho é ofensivo. Forjados à imagem e semelhança de seu falso e tosco messias, cevados como ele pela asneira e pela ira, nutridos pela rispidez e boçalidade, atacam, destroem, dizimam, arrasam, solapam tudo o que encontram pela frente. Não os chamo de vândalos, arruaceiros, baderneiros ou outros rótulos que se costumam atribuir a quem protesta contra as injustiças sociais. São facínoras, celerados, terroristas.
Nos últimos anos, artistas, escritores, atores, músicos, cineastas, todos aqueles que trabalham com afinco e dedicação no mundo da arte foram injuriados, agredidos, criminalizados. Não há ninguém, entre aqueles que apoiaram o obscurantismo bolsonarista, que possa querer se isentar da responsabilidade pela barbárie a que acabamos de assistir. Todos sabiam quem era o seu “mito”, defensor da tortura, do fuzilamento de adversários, do desrespeito às minorias.
A destruição do quadro de Di Cavalcanti é simbólica, mas apenas uma demonstração escandalosa da perversidade e da truculência de uma seita fundamentalista, um movimento extremista que cresceu com apoio de empresários, militares, formadores de opinião, líderes religiosos e oportunistas de toda espécie.
Não venham mais falar de polarização política, não ousem mais engendrar falsas equivalências, insinuar simetrias descabidas. É hora de cobrar satisfações de todos os que fizeram arminha com a mão, evocaram o mantra fascista “Deus, Pátria e Família”, questionaram a inviolabilidade das urnas, insuflaram a delinquência da turba de energúmenos.
É momento de chamar à razão a tal entidade chamada mercado. É o instante de punir, com rigor, as autoridades civis e militares que compactuaram — e continuam a compactuar — com a tentativa de institucionalização do caos. Cadeia para os golpistas.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor