Em “Máscaras - Do Teatro Ritual ao Teatro Brincante” (2019), o ator, encenador, dramaturgo, diretor e pesquisador Oswald Barroso (1947-2024) aborda diferentes aspectos do uso da máscara na cultura, com foco especial nas festas populares tradicionais do Nordeste.
O encontro com o livro foi decisivo para o cineasta Alisson Severino transformar as memórias de infância que envolviam tradições com brincantes mascarados no projeto do documentário “Semana Santa”. A obra, cujas gravações finalizam neste domingo (31), apresenta a experiência dos chamados “Karetas” da Serra Areias, do município de Jardim (a 540 km de Fortaleza), na região do Cariri.
Das memórias ao projeto
“Eu tenho relação com personagens mascarados desde pequeno. Parte da minha família é de Fortim [a 135 km de Fortaleza] e lá tinha e ainda tem muita tradição do papangu. Na minha rua [na Capital], rua do Trilho, Via Férrea, que é a comunidade onde nasci e cresci, tinha a tradição de malhação do Judas e ter uns mascarados passando na rua”, recupera.
“Eu era muito pequeno, não tenho certeza dos detalhes, se se chamavam caretas ou papangus, mas acontecia lá durante a Semana Santa. Tinha diferenças com a tradição que encontrei no Cariri, mas guarda semelhanças”, avança.
As referências acumuladas no período foram se alargando ao longo do crescimento de Alisson, que, já adulto, foi se interessando por cultura popular e conhecendo um pouco mais sobre “outros mascarados no Ceará, porque tem uma infinitude de manifestações em regiões diferentes”.
A transformação do interesse no atual projeto — aprovado no mais recente edital Cinema e Vídeo da Secult e produzido pela Mar de Fogueirinha Filmes, de Alisson e da produtora Camilla Osório de Castro —, ele demarca, aconteceu após o contato com a produção de Oswald Barroso.
Na pesquisa, o pensador articula um olhar sobre processos de colonização nas expressões populares que usam máscaras no Nordeste, levando em conta referências ibéricas, africanas e indígenas na construção das tradições da região.
“Além da perspectiva da festa, da brincadeira, ele também trazia a perspectiva de uma relação ritualística que esses povos tinham com essas festas, com a vida, com a natureza, o mundo que está a sua volta”
Serra Areias
Na produção de Oswald, Alisson encontrou informações sobre o lugar de destaque da cidade de Jardim, no Cariri cearense, no que se refere aos festejos dos Karetas da Semana Santa, típicos do território.
“Fui cruzando pesquisas, informações, notícias de jornal para entender e, depois, parti para cá para conhecer pessoas, quem fazia a festa, os articuladores, onde acontecia. Encontrei um universo muito vasto. Existe a festa de cada uma das diversas localidades que estão ao redor do centro de Jardim”, explica
Essa visita inicial ocorreu em 2023, quando o diretor foi à cidade para “estar dentro e fazer parte da festa” como brincante. O festejo, no território, costuma abrir no Domingo de Ramos e terminar no Domingo de Páscoa.
Ao final do cortejo de abertura em Jardim, enquanto filmava e fotografava a festa, Alisson foi abordado por dois Karetas que o convidaram para a festa da Serra Areias, nos arredores do centro da cidade.
Convite e conexão
“Foi muito interessante porque eles me convidaram trajados. Não tiraram a máscara, estavam falando com a voz e o gestual alterados, que são características dos karetas”, lembra. Com o convite, o realizador rumou para o distrito acompanhado dos dois anfitriões, João Monte e Ytamar Nascimento — brincantes que também trabalham com música, na banda Manhosinhos do Forró.
“A relação comunitária aqui é muito interessante e bonita, dentro de algo que valorizo. Os camaradas são da banda, fomos apresentados a eles e é massa fazer parte da comunidade desse jeito. Eles me convidaram pra cá, me acolheram aqui e nesse dia percebi que era aqui que esse filme tinha que acontecer”, ressalta Alisson.
As fotos e vídeos que ele fez das programações foram compartilhadas com os Karetas da região e usadas para divulgação em páginas do Instagram. “A gente conseguiu estabelecer uma conexão e comunicação massa”, acentua.
“Máscara de corpo inteiro”
Os Karetas da Serra Areias têm especificidades que os diferenciam até dos Karetas de Jardim. “De localidade para localidade, as diferenças vão para a infinitude: nos trajes, jeito de fazer, maneira de festejar, ritualística, se andam em bando ou isolados. Isso, inclusive, tem mudado bastante ao longo dos anos”, observa Alisson.
Conversando com brincantes ou ex-brincantes mais velhos, como os irmãos Diassis, Antônio e João Salu — que não brincam mais, mas sabem muito —, o cineasta foi entendendo que as características dos trajes, por exemplo, variam “de região para região, e também ao longo do tempo”.
Juntam-se elementos de natureza, como palha, cabaça e folhas, a elementos do mundo trabalho, como ferramentas, luvas e botas de proteção. Há, também, presença de máscaras de látex ou plástico mais padronizadas e outras, artesanais, feitas de papelão.
Em determinados eventos de Karetas em Jardim, até, há presença de grupos de pessoas mais jovens, entre 17 e a faixa dos “20 e poucos”, que trazem elementos queer no traje Kareta, alargando a brincadeira. Independentemente da forma, o norte da festa segue o mesmo.
“O Kareta usa uma ‘máscara de corpo inteiro’ que serve para guardar plenamente a identidade, porque faz parte da brincadeira que ele não se revele e que a curiosidade gerada seja transformada em poder para ele naquele momento”, reflete.
Data religiosa e tradição popular
O festejo tradicional da região se conecta diretamente ao calendário católico, tendo as próprias ritualísticas alinhadas às datas da Semana Santa. De um lado o sagrado; do outro, a brincadeira. É difícil precisar exatamente a gênese da tradição da Festa dos Karetas, mas consta que ela tem relação com o período de colheita, como uma celebração rem agradecimento.
“Ela celebra a fartura da colheita, que é um movimento de renovação da natureza, em que tudo que foi plantado, apostado e esperançado no chão da terra se transforma em alimento A tradição católica lembra a crucificação e a ressurreição de Cristo, também um movimento de transformação. Essas coisas estão imbricadas”, percebe Alisson.
A mistura entre crenças católicas e tradições que dialogam com elas, mas também a subvertem, é característica central da cultura popular.
“Se faz uma reza, mas se utiliza um chá de ervas. É muito misturado. O povo misturou com muita facilidade e isso, ao meu ver, é a maneira que essas tradições populares foram encontrando para sobreviver”
“Quando você observa, as festas são muito distantes uma da outra, porque a tradição cristã preza por um momento de recolhimento, enquanto os Karetas têm a fartura do gosto, a euforia, frescar, avacalhar e fazer arruaça. Mas, à sua maneira, elas celebram a mesma coisa”, sustenta.
Circulação comunitária
As gravações de “Semana Santa” se encerram neste domingo de Páscoa na região, e a intenção é finalizar o longa-metragem ainda neste ano. Isso, explica Alisson, para poder circular com a obra já a partir de 2025.
“A ideia desde já é que a circulação seja comunitária, que possa acontecer tanto aqui como em comunidades vizinhas e também em outras que celebram a tradição dos Karetas. Se não dentro de sala de cinema, fazendo um cinema no meio da praça ou do terreiro. O mais interessante é que a gente possa fazê-la de forma comunitária”
“Juntamente, vamos buscar o circuito de festivais, entendendo que isso pode trazer um movimento interessante não só para o filme, como para a localidade e para a tradição que acontece aqui em Jardim”, antevê.
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