O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso decidiu, em liminar, suspender a aplicação do piso salarial da enfermagem neste domingo (4). Na segunda-feira (5), completa-se um mês desde a sanção da lei e, para cumprir com a legislação, entidades públicas, filantrópicas e privadas deveriam garantir o pagamento na folha deste mês.
Desde a sanção, no entanto, uma Ação Direta de Insconstitucionalidade tramitava no STF questionando a aplicação da lei.
"As questões constitucionais postas nesta ação são sensíveis. De um lado, encontra-se o legítimo objetivo do legislador de valorizar os profissionais, que, durante o longo período da pandemia da Covid-19, foram incansáveis na defesa da vida e da saúde dos brasileiros. De outro lado, estão os riscos à autonomia dos entes federativos, os reflexos sobre a empregabilidade no setor, a subsistência de inúmeras instituições hospitalares e, por conseguinte, a própria prestação dos serviços de saúde", diz o texto da medida cautelar.
A nova lei prevê que enfermeiros de todo o país, contratados em regime de CLT, terão de receber, no mínimo, R$ 4.750 mensais. Já o piso de técnicos de enfermagem será de R$ 3.325; e o de auxiliares e de parteiras, R$ 2.375.
Conforme a decisão, a aplicação do piso está suspensa até que sejam esclarecidos os impactos sobre a situação financeira de Estados e Municípios, os riscos de demissões em massa e a garantia de que não seja afetada a qualidade dos serviços de saúde.
O ministro dá ainda o prazo de 60 dias para que os intimados apresentem informações acerca dos pontos ressaltados. E pontua que, "naturalmente, as instituições privadas que tiverem condições de, desde logo, arcar com os ônus do piso constante da lei impugnada, não apenas não estão impedidas de fazê-lo, como são encorajadas".
Críticas à decisão
O presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Enfermagem, deputado Célio Studart (PSD), disse ser "frustante" a decisão do ministro" e que a Frente continuará na busca da efetivação do piso.
"Esperamos que neste prazo o Congresso Nacional e o Governo solucionem a questão das fontes de financiamento para equacionar está questão em definitivo. Demos inclusive a nossa contribuição ao apresentarmos o projeto de lei que possibilita o uso de royalties do petróleo (PL 1241/2022)", afirmou Studart.
A vereadora Enfermeira Ana Paula, presidente licenciada do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará, também repudiou a decisão.
"Isso é inaceitável para nós que tanto lutamos para trazer a valorização da enfermagem. (...) Não estão respeitando aqueles que se dedicaram, aqueles que morreram, aqueles que se dedicam diariamente", disse.
Entenda a suspensão do piso da enfermagem
A Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, que institui o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e das parteiras, foi proposta no Senado e aprovada na Casa em novembro de 2021.
Desde que foi enviada para aprovação na Câmara do Deputados, acirraram-se debates sobre o valor do piso, a fonte de financiamento e os riscos para o setor diante da elevação dos salários.
Após aprovação na Câmara, em maio, o Congresso Nacional teve de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para dar segurança jurídica à proposta, já que instituir mudanças de custos para o setor público não é competência do Legislativo. Só após aprovação da PEC, a proposta de lei foi enviada ao presidente Jair Bolsonaro (PL) para sanção.
Ao sancionar a lei, Bolsonaro vetou o artigo que previa o reajuste anual do piso, ponto que ainda está sob avaliação do Parlamento.
Por ocasião da oficialização da lei, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) acionou o STF contra a lei, alegando vícios de inconstitucionalidade diante da tramitação no Congresso Nacional e também por "efeitos práticos adversos".
"Nesse sentido, sustenta que o seu conteúdo esvazia a liberdade de contratação e negociação de forma muito restritiva; não considera as desigualdades regionais que tornam o piso inexequível em algumas unidades da Federação; e cria distorção remuneratória, já que o piso salarial dos médicos é inferior ao previsto para os profissionais da enfermagem", diz o texto.
Em todo país, a aplicação do piso praticamente não avançou diante do questionamento da CNSaúde. No Ceará, desde a sanção, apenas a Prefeitura de Tauá institui em lei municipal o novo piso.
No início de agosto, o STF solicitou informações à Presidência da República, à Câmara e ao Senado e pediu manifestação da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República.
Com exceção da AGU, todos se manifestaram pela constitucionalidade da lei, ressaltando os aspectos constitucionais que asseguram a criação da lei e a aplicação do novo piso.
O que avalia o ministro Roberto Barroso:
1) Se "é compatível com a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo para elaborar projeto de lei que disponha sobre aumento de remuneração de servidores públicos";
2) Se "mantém hígida a autonomia financeira e orçamentária dos entes subnacionais";
3) E "se deu com observância ao princípio da proporcionalidade, tendo em vista os efeitos, desejados e indesejados, decorrentes da estipulação de um patamar mínimo de remuneração para a categoria".
Suposto vício de iniciativa
É importante ressaltar que outros pisos salariais, como o do magistério e dos agentes de saúde e de endemias, foram iniciados no Poder Legislativo e aprovados mediante previsão de emenda constitucional.
"Ocorre que, no caso presente, o dispositivo constitucional que determinou o estabelecimento de piso salarial nacional para os profissionais da enfermagem só foi editado após a aprovação definitiva do projeto que deu origem à Lei nº 14.434/2022. Com efeito, a PEC nº 11/2022 só foi proposta em 04.05.2022, mesma data em que o Projeto de Lei nº 2.564/2020 foi aprovado pela Câmara dos Deputados, depois de ter tramitado no Senado Federal", diz o ministro na liminar.
Ele ressalta, portanto, que a solução da controvérsia dependerá da definição sobre "o momento em que se deve aferir a legitimidade da iniciativa legislativa no momento do exercício da iniciativa; em determinado ponto do processo legislativo; ou ao tempo da sanção presidencial".
Para o ministro, "há dúvida sobre a aptidão da emenda", o que será avaliado.
Quem define a remuneração dos servidores
Outro ponto é a alegação de desrespeito à autonomia dos entes subnacionais em razão da imposição, por lei federal, de piso salarial aplicável a todos os profissionais da enfermagem, do setor público e privado.
O ministro ressalta que, de fato, se tratam de casos excepcionais já que os entes federativos têm autonomia para estabelecer a remuneração de seus servidores e seus gastos de forma geral.
No caso do piso do magistério, por exemplo, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para substanciar, com prioridade, o piso dos professores. No piso dos agentes de endemias, há um artigo que prevê a contrapartida de assistência da União aos custos.
Nesse ponto, são observados os impactos financeiros previstos para os municípios, que contam com a maior parcela de profissionais, para o setor privado conveniado aos SUS, principalmente, para os hospitais filantrópicos.
"Embora não se possa afirmar, de pronto, que a medida legislativa imponha vulneração ao pacto federativo, a preocupação com a situação financeira dos entes subnacionais deverá orientar a apreciação do pedido cautelar", diz o ministro.
Riscos à empregabilidade e oferta de leitos
Por último, o ministro ressalta a alegação de desrespeito à proporcionalidade da lei diante de possíveis efeitos colaterais.
O que é o princípio de proporcionalidade:
"Trata-se de instrumento de proteção de direitos fundamentais que permite ao Poder Judiciário a invalidação de atos do poder público quando: (i) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); (ii) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade); e (iii) os custos superem os benefícios – i.e., quando o que se perde é de maior relevo do que o aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)", explica o texto.
Entre os riscos apontados na Ação Direta de Inconstitucionalidade, são alegadas possibilidade de "demissões em massa" no setor privado e "prejuízos à manutenção da oferta de leitos e demais serviços". Os pontos são baseados em dados de pesquisas de instituições como Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), a Federação Brasileira de Hospitais (FMH) e a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).
O ministro aponta que "embora ainda não haja dados oficiais sobre as demissões no setor, tendo em vista que a lei sequer completou seu primeiro mês de vigência, as entidades representativas do setor são unânimes em afirmar que a dispensa de funcionários será necessária para o equacionamento dos custos".
A desigualdade regional também é levada em consideração pelo ministro, diante do risco de maior prejuízo para unidades federativas mais pobres. Ele cita como exemplo a disparidade do impacto do aumento para o estado de São Paulo, previsto em 10%, e para o estado da Paraíba, previsto em 131%.
Suspensão da lei
Diante dos argumentos, o ministro Roberto Barroso afirma que:
"No fundo, afigura-se plausível o argumento de que o Legislativo aprovou o projeto e o Executivo o sancionou sem cuidarem das providências que viabilizariam a sua execução, como, por exemplo, o aumento da tabela de reembolso do SUS à rede conveniada. Nessa hipótese, teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta", diz.
A partir de agora, são esperadas as alegações em contrapartida das seguintes entidades:
- Ministério do Trabalho e Previdência
- Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
- Ministério da Saúde
- Conselho Nacional de Saúde (CNS)
- Conselho Nacional de Secretários de Saúde(Conass)
- Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems)
- Federação Brasileira de Hospitais (FBH)