Envolta em polêmicas ambientais, usina de urânio no CE completa ao menos 20 anos sem aval do Ibama

Projeto aguarda autorização do Ibama que ainda avalia "conformidade do EIA/Rima com os termos de referência estabelecidos para a realização do estudo ambiental"

Já se passaram pelo menos 20 anos desde que começou a ser ventilada a notícia de que um megaprojeto de exploração e beneficiamento de urânio transformaria a realidade de Santa Quitéria e municípios adjacentes, a 210 quilômetros de Fortaleza. Nesse tempo, também, não houve aval por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a instalação da usina. Entre impasses e alguns avanços, polêmicas e cronogramas não cumpridos, o projeto ainda não foi concretizado.

Entenda as polêmicas

Marcado por polêmicas ao longo dos anos, o fim do projeto é defendido por ambientalistas e moradores das proximidades. Mesquita pontua que falta clareza do poder público e das empresas do consórcio formado pela empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil (INB) S.A. e pela Fosfatados do Norte-Nordeste S.A. (Grupo Galvani) quanto, por exemplo, aos empregos gerados e às ações que devem ser tomadas para mitigar os impactos ambientais. O projeto tem potencial de geração de 2,8 mil empregos diretos e R$ 100 milhões de reais de massa salarial anual.

“Falta clareza, usam termos ilusórios. Em Caetité, soubemos de uma empresa que empregava por três meses e depois demitia, contratava outra pessoa. E o que fica nessas minas são as montanhas de rejeito”, diz, destacando que o consórcio já disse para a comunidade que não haverá barragens de rejeitos como em Brumadinho (MG), por exemplo, mas que ainda assim a população tem medo.

Além disso, ele teme pela poluição de um açude na região. “É nosso principal reservatório e temos uma colônia de pescadores que tiram do açude o seu sustento. Temos a população que fica no entorno e que teme pela perda de produção. Tudo isso já vem sendo dito há muito tempo. Eles disseram que vão transferir os animais silvestres dos arredores da mina para outro local. Como eles vão fazer isso com os pássaros? Como vão fazer com ‘caças’ como tatu, por exemplo?”, questiona Mesquita.

O consórcio também foi demandado pela coluna. Em nota, o Projeto Santa Quitéria afirma estar em fase de licença prévia junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e diz que os trâmites para a instalação da usina no interior do Ceará "estão seguindo o fluxo normal". 

Ainda por meio de nota, o consórcio rechaça a possibilidade de contaminação nas águas nas redondezas do projeto, uma vez que o beneficiamento do urânio e demais produtos serão feitos com reciclagem em ambiente fechado.

"O próximo passo é a solicitação da Licença de Instalação que viabilizaria a implantação do projeto (fase de obras), que deve durar entre 24 e 36 meses. Os ritos estão seguindo o fluxo normal. O Consórcio garante que não haverá contaminação das águas, pois todos os líquidos e efluentes serão reciclados em um circuito fechado. Prezamos pelo diálogo aberto e transparente, mantendo escritórios em Santa Quitéria e Itatira, além de oferecer e-mail e telefone gratuito para dúvidas. Também realizamos encontros periódicos com as comunidades vizinhas para compartilhar informações sobre o projeto", esclarece.

Direitos humanos afetados

Em 2022, reportagem do Diário do Nordeste mostrou que o projeto de Santa Quitéria pode ferir direitos humanos com 28 irregularidades identificadas e impactar diretamente, pelo menos, 11 municípios com material radioativo, além de elevar a radiação do local. O alerta foi feito em relatório do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que também apontou omissões no pedido de autorização para a retirada do minério.

No caso da mineração no Ceará, especialistas e moradores temem prejuízos para a saúde, inclusive com casos de câncer associados à radioatividade, falta de água para consumo humano e para criação de animais. Populações indígenas e quilombolas, como acrescentou o documento na época, não foram consideradas no pedido de licença.

Ibama ainda não autorizou funcionamento de usina 

Na última semana, foi dado mais um passo para a construção da usina de urânio e outros elementos fosfatados: a autorização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), publicada no Diário Oficial da União (DOU) do dia 28 de maio. 

Agora, o consórcio responsável pela usina aguarda o Ibama avaliar o Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do projeto.

A coluna procurou o instituto para saber do andamento da análise. Em nota, o Ibama respondeu que está avaliando “a conformidade do EIA/Rima do projeto com os termos de referência estabelecidos para a realização do estudo ambiental”.

“Esta análise está em andamento independentemente da emissão da licença pela Cnen para o Projeto Santa Quitéria. Assim que o estudo ambiental for recebido, o Ibama iniciará a análise do mérito do EIA/Rima, seguindo o procedimento de licenciamento conforme estabelecido para a fase de análise da Licença Prévia”, diz ainda o órgão ambiental.

Autorizações distintas

Apesar de se tratarem de autorizações distintas, a recente aprovação do Cnen pode indicar “mais um elemento” para que o Ibama “conceda a licença”, avalia Tomás Figueiredo Filho, advogado especialista em Mineração e membro da Comissão Nacional de Direito Minerário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

“É mais uma etapa vencida (a autorização do Cnen). São órgãos distintos e licenciamentos distintos, apesar de um colaborar com o outro e, a partir do momento que o Cnen diz que está tudo ‘ok’, o Ibama tem mais um elemento para avaliar e conceder a licença”, afirma o advogado.

Tomás lembra que no fim de maio o Ibama deu uma espécie de checklist na documentação adicional enviada pelo consórcio para o processo de licenciamento ambiental. “O órgão recebeu os esclarecimentos e agora vai avaliar. Isso é mais um passo favorável ao andamento dessa licença prévia. A aprovação do Cnen, que diz respeito às questões radioativas”.

Busca mundial por urânio

A usina de lavra e beneficiamento deve produzir fertilizante fosfatado (99,8% do material a ser produzido) e concentrado de urânio não enriquecido (0,2%). Com a implementação da usina, a ideia é que se reduza a importação de adubos no Brasil. No que diz respeito ao urânio, a exploração e beneficiamento podem colocar o Ceará e o Brasil em uma posição estratégica, já que o consumo mundial de combustível nuclear está crescendo.

Neste ano, inclusive, Brasil e França firmaram protocolo de intenções para cooperar na extração de urânio. O documento sugere visitas de delegações do setor privado dos dois países para facilitação de projetos conjuntos. As usinas nucleares geram cerca de 70% da eletricidade da França.

Enquanto a demanda por urânio no mundo avança e algumas notícias dão conta de que a construção (aparentemente) está um pouco mais próxima de iniciar, a Galvani anunciou que planeja investir R$ 3 bilhões, em 2027, na duplicação da capacidade de operação industrial na Bahia, com uma nova mineração, além de uma nova fábrica no Ceará, que é a usina de Santa Quitéria.

Ao contrário do projeto Santa Quitéria, a extração de fosfato na Bahia não é combinada à extração de urânio, o que acaba facilitando a viabilização da mina no local. “Lá na Bahia se trata de uma mina de fosfato convencional. O complicador aqui é o urânio, porque fora isso é uma mina de grande porte, um projeto de classe mundial, como várias outras de grande porte já licenciadas no Brasil”, diz o advogado.

O que é o Projeto Santa Quitéria?

O Projeto Santa Quitéria é fruto de uma parceria entre a empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil, com monopólio constitucional sobre o urânio, e a Galvani, para a exploração de uma jazida de colofanito em Santa Quitéria, no interior do Ceará. O colofanito tem o urânio e o fosfato. “Para se ter uma ideia, de maneira bem genérica, é como se fossem 200 partes de fosfato para uma parte de urânio”, diz o advogado.

Após a constatação, o INB alterou a classificação da jazida. “Isso fez com que ela deixasse de ser objeto desse monopólio e aí o INB fez uma licitação para que uma empresa privada, que no caso a Galvani foi a vencedora, viabilizasse esse projeto”.

A única mina de urânio em operação no Brasil fica em Caetité, no estado da Bahia. De acordo com o site do INB, responsável pela mineração no local, na Província Uranífera de Lagoa Real há 87 mil toneladas de urânio em 17 depósitos. Para o líder comunitário e integrante do MST Santa Quitéria Valdemir Mesquita, conhecido como Pé de Mola, o exemplo de Caetité preocupa os moradores da região.