O tema da coluna desta semana é daqueles que a lógica matemática chama de condição necessária, mas não suficiente para algo acontecer: eu não quis ser Engenheiro de Ensaios em voo. Se quisesse, teria conseguido? Não sei. Meus amigos, hoje capitães, comentam da dificuldade teórica e prática do voo, rotina de muitos voos, muita aceleração para o corpo (força g) e muito estudo.
Ensaios em voo é uma das carreiras que os Oficiais Engenheiros do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) podem seguir após se formarem 1ºˢ Tenentes da Força Aérea Brasileira (FAB). Há uma carreira própria dentro do IPEV (Instituto de Pesquisas e Ensaios em Voo), órgão do DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial) em São José dos Campos-SP.
Segundo o instituto, o Curso de Ensaios em Voo (CEV) tem por finalidade a formação de pilotos e engenheiros qualificados para planejar, executar e gerenciar atividades de Ensaios em Voo relacionadas com voos experimentais de desenvolvimento, modificação, avaliação ou certificação de aeronaves e/ou sistemas embarcados, bem como para verificar atividades deste gênero conduzidas por terceiros igualmente qualificados.
Todos os aviões da FAB entrando na frota passam pelo recebimento do IPEV, por exemplo.
Para terem experiências de ensaios em voo antes do fim da graduação, professores do ITA ajustam voos para os alunos da graduação terem as primeiras ambiências.
Voo de ensaio
Assim, no 4º ano (2011), o então Aspirante a Oficial Igor Pires, junto com a querida turma de aeronáutica (aer-12), fez o seu primeiro e último voo de ensaio. O voo seria parte da disciplina de Teoria de Controle de Aeronaves e teríamos contato prático com as formas naturais de oscilação de um avião.
O avião foi um C-97 (versão militar do Brasília) do IPEV. O “X” na cauda indica que o avião é do grupo que realiza ensaios em voo (eXperimental), é o símbolo do IPEV. Perceba que o avião tem “empenagem horizontal alta, elevada, ou cauda em T”, ao contrário da maioria dos aviões comerciais que conhecemos: a cauda alta fez toda a diferença no presente episódio.
Conheci ali o medo de “acrobacias” aéreas. Todos bastante empolgados, inclusive eu, de chegar a ser um futuro engenheiro embarcado.
Todos os 16 alunos confortavelmente sentados em duplas, decolamos do aeroporto de São José dos Campos numa manhã de tempo bom. Quem decola da cabeceira 16 e mantém a direção, (proa) em poucos minutos atinge o litoral paulista bem sobre Caraguatatuba e São Sebastião. Essa foi a região sobre o oceano atlântico onde a experiente tripulação do C-97 faria as demonstrações.
Como numa montanha-russa
Eis que o Comandante iniciou realizando teste levantando e baixando o nariz do avião, era o que se chama de busca pela frequência natural de oscilação da aeronave. Essa manobra, já foi inquietante, era como estar numa montanha-russa com partes altas e baixas. Quando a amplitude da oscilação de nariz já era grande, na parte de trás do avião, onde não havia poltronas, um estrondo grande de metal batendo em metal, primeiro grande susto de todos (não apenas meu): uma escada mal presa se desprendera com as oscilações e veio ao chão.
“Assimilamos o golpe” e já estávamos novamente interessados nas próximas manobras. Estava acertado que todas as oscilações seriam feitas em dois conjuntos: avião sem e com hiper sustentadores ativados, os famosos flaps. Seria realmente um ensaio completo.
O medo grande chegou
O medo grande chegou, porém, quando a tripulação foi simular a recuperação de uma situação conhecida como deepstall na aeronave.
O que é isso, Igor? A aeronave entra em stall quando o ar sobre as asas se descola destas, imprimindo ao avião grande perda de sustentação e consequente perda de altitude. O caso clássico de stall acontece quando a aeronave está na posição de “nariz bastante levantado”, como na ilustração abaixo.
Nas aeronaves de cauda em T, ou empenagens horizontais altas, como o Brasília, o stall pode evoluir para um tipo grave de perda de sustentação, o deepstall ou stall profundo, quando a geometria da cauda em T é sombreada pelas asas, que jogam vórtices de ar sobre as partes móveis traseiras do avião.
Os vórtices de ar, sobretudo ar turbulento, impedem a ação correta dos profundores, que baixam e sobem o nariz do avião. Nesse caso, se o avião de cauda em T entra em deepstall, pode não sair porque os comandos do piloto podem se tornar inefetivos. (Os aviões de empenagens horizontais baixas não são sombreáveis pelas asas).
Igor, como se evita o deepstall? Aeronaves como o C-97 possuem o chamado stickpusher (empurrador de manche) que, em caso de nariz excessivamente elevado, para prevenir o perigoso deepstall, empurra o manche da aeronave para frente independente da vontade do piloto, buscando baixar o nariz do avião.
No meu ensaio em voo, a experiência passava justamente pela observação de um ciclo de stall + uso do stickpuscher, para prevenir deepstall.
O Piloto vai puxando para trás o manche do avião e fazendo-o levantar o nariz. O aumento de ângulo foi sendo feito gradual. Alguns segundos depois, as asas vão acusando um eventual descolamento parcial, e sentíamos o avião como se estivesse voando com dificuldades, numa estrada esburacada.
Com o ângulo aumentando, lembro do meu colega ao lado falar de buffeting que é o choque dos vórtices de ar colidindo com a estrutura da aeronave: o avião tremia todo.
Mais alguns segundos e uma das maiores sensações de queda da vida, o stickpusher do avião atuou e, em fração de segundo, nós que estávamos com nariz bem alto, passamos a ter a posição de nariz apontando na vertical para baixo.
Mudança drástica de atitude
Igor, não foi uma sensação falsa agravada pelo medo? Lembro que a aeronave estava com a porta da cabine aberta e, mesmo uns 10 metros afastado do cockpit, vi o mar de SP pelo para-brisa dos pilotos, ou seja, foi um movimento muito brusco que mudou drasticamente a altitude do avião.
Após a recuperação ao voo nivelado, o pensamento era apenas um: descer daquele avião o mais rápido possível. Se não suportava um movimento não-acrobático de uma aeronave de transporte, como poderia suportar acrobacias aéreas em caças e aeronaves mais velozes, como é a rotina dos meus colegas?
Reconheci-me imediatamente como alguém que não conseguiria fazer o curso de ensaios em voo, mas não sofri por isso, continuei grato por tudo que a FAB me deu.
A 2ª etapa do voo com o uso dos flaps não aconteceu, inexplicavelmente, Graças a Deus.
Após uns 40 minutos de voo, a tripulação regressou de forma bastante segura a São José e o único voo de ensaio do Asp Of Igor Pires tinha acabado.
Como sabia que não voaria regularmente pela FAB, o que achei que seria meu sonho, optei por sair da Força, após a formatura, realizando a justa indenização financeira.
Deixei muitos amigos, alguns Oficiais Engenheiros de Ensaios em voo, dos melhores profissionais da FAB.