Do lixo ao luxo: o círculo virtuoso da valorização de resíduos

"Podemos realmente aprender com a Natureza? O que até agora foi bom para nós terá sido bom para o mundo que nos abriga como espécie?"

O artigo a seguir foi escrito com exclusividade para esta coluna por Cibele Gaspar, mestra em Administração e Gestão Estratégica, especialista em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria, Financiamentos Internacionais e Parcerias Público Privadas. Atua como Advisor e Personal Banker. Atualmente é Diretora da Nexxi Assessoria Financeira. O assunto que ela aborda é atualíssimo:
 
 
"Na Natureza nada se exaure em seu primeiro uso. Quando uma coisa serviu ao máximo a um fim, é inteiramente nova para um serviço posterior. Essa máxima de Ralph Waldo Emerson (escritor e filósofo norte-americano, já falecido) seria uma espécie de mantra para o que chamamos de economia circular – e que, no final das contas, é uma tentativa do ser humano de emular a natureza, onde a realimentação dos processos biológicos é contínua, diferentemente dos nossos processos industriais.  Ver esse conceito começar a ser discutido e implementado empresarialmente é um avanço frente a séculos de expropriação ambiental e de desperdício de capital natural.
 
"Economia circular associa desenvolvimento econômico a um melhor uso de recursos naturais, por meio de novos modelos de negócios e da otimização nos processos de fabricação com menor dependência de matéria-prima virgem, priorizando insumos mais duráveis, recicláveis e renováveis. Trata-se de um aperfeiçoamento do sistema econômico atual, que visa a um novo relacionamento com os recursos naturais e a sua utilização pela sociedade. 
 
"Dentro da gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU) esse conceito se faz ainda mais pertinente. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), ainda existem no país 2.612 lixões a céu aberto em operação, que provocam desigualdade, miséria e doença. Em 2019, no Ceará existiam 301 lixões, somente 21 municípios tinham programas de coleta seletiva e apenas 10 dispunham de aterros.
 
"O Ministério do Meio Ambiente estima que cada brasileiro gera, em média, 1 kg de resíduos sólidos urbanos por dia, e que toda a população brasileira gere aproximadamente 71 milhões de toneladas de resíduos por ano, sendo que apenas uma parte desse montante é destinada de forma ambientalmente adequada. No Nordeste, estima-se que só no ano de 2019 foram produzidas 19,7 milhões toneladas de RSU, atrás apenas do Sudeste, com 39.442.995 toneladas.
 
"Podemos realmente aprender com a Natureza? O que até agora foi bom para nós terá sido bom para o mundo que nos abriga como espécie?
 
"O reconhecimento do lixo e do esgoto não como um passivo ambiental, mas como um ativo energético, conjugado a ações de fortalecimento do marco regulatório do setor parece sinalizar uma luz no fim do túnel. Sair do lixo para o luxo da geração de energia renovável e limpa, com redução de emissões de gases de efeito estufa, incorporação de novas tecnologias e geração de emprego e renda pode ser a solução dessa equação complexa.
 
"O lixo e o esgoto, quando adequadamente tratados e com a tecnologia adequada, transformam-se em biometano (biogás), tornando-se fonte de geração de energia renovável de baixo carbono e contribuindo para a geração de empregos e para o desenvolvimento sustentável das economias, atuando diretamente na redução de desigualdades, pelo impacto positivo causado nos determinantes de saúde e qualidade de vida da população. 
 
"Acreditando no potencial brasileiro na produção de biogás  - o maior do mundo - alguns empreendedores corajosos iniciaram essa jornada lá atrás, incorporando tecnologia e apostando na geração do biogás ou biometano como substitutivo para combustíveis de origem fóssil e como alternativa para a gestão adequada dos resíduos produzidos pela indústria sucro alcooleira, agronegócio e saneamento.  
 
"Hoje, no Brasil, temos 638 plantas de biogás em operação, com 1,8 bilhão de m3 produzidos por ano, o que representa um crescimento nos últimos cinco anos na faixa de 20% ao ano. Cerca de 79% das plantas de biogás estão no agronegócio, mas o maior volume de produção hoje decorre das estações de tratamento de esgoto e de resíduos sólidos.
  
"O Ceará, com seu espírito empreendedor, não deixou por menos. É do Ceará a primeira usina de tratamento do biogás do Norte e Nordeste. O empreendimento é uma parceria da Marquise Ambiental com a Ecometano.  Localizada no Aterro Municipal Oeste de Caucaia (ASMOC), a planta possui um sofisticado sistema de tratamento de gás natural renovável e já alcançou a capacidade de produção de 90 mil m³ de biometano por dia, tornando-se a segunda maior unidade do gênero do País e deve suprir cerca de 20% da necessidade de gás para as residências, para o comércio e para as indústrias do Ceará.  
 
"Também por meio dela é possível evitar a emissão de metano, que é 25 vezes mais nocivo como gás de efeito estufa ante o CO2 (dióxido de carbono) beneficiando, dessa forma, o Meio Ambiente e as gerações futuras.  
 
"Trazendo a perspectiva para a nossa realidade, estamos no Brasil há décadas tentando resolver o problema dos lixões a céu aberto, sem êxito, até agora. Não por falta de tecnologia adequada para fazê-lo – a tecnologia dos biodigestores é bem antiga - mas certamente por carência de um ambiente de negócios adequado e devidamente regulado, que traga segurança jurídica aos investidores. 
 
"Alguma coisa começa a mudar. O projeto de lei 2193/2020,  que institui a Política Federal do Biogás e Biometano; o advento do Marco Regulatório do Gás Natural ( Lei 14.134, de 08.04.2021); a criação de uma Frente Parlamentar em Defesa das Energias Renováveis, destinada ao desenvolvimento do setor, buscando transformar o Brasil numa potência mundial e referência nesse segmento; o Projeto de Lei 3865/2021, de 03.11.2021, que Institui o Programa de Incentivo à Produção e ao Aproveitamento de Biogás, de Biometano e de Coprodutos Associados – PIBB, em moldes muito semelhantes ao do exitoso Proimfa, são exemplos de ações regulatórias relevantes, concluídas e em andamento.
 
"Em setembro deste ano, foi assinado um acordo de cooperação entre o Ministério do Meio Ambiente, a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), a Associação Brasileira de Empresas Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) e a Associação Brasileira do Biogás (Abiogas), que deu início à uma série de ações para criar um ambiente de negócios favorável para investimentos no setor.
 
"O acordo objetiva o desenvolvimento do Atlas de Recuperação Energética de Resíduos Sólidos, uma ferramenta digital que indicará as regiões com maior potencial para investimentos em recuperação energética. A ferramenta deverá permitir visualizar o fluxo de resíduos entre os municípios e prever onde há mais viabilidade econômica para o aproveitamento desse material, o mapeamento de todas as unidades de reciclagem, enfim, ter o aproveitamento energético mapeado para orientar os investidores sobre as melhores opções de escolha para implantação dos empreendimentos com informações atualizadas sobre a infraestrutura relacionada - linhões, logística de transporte, gasodutos, ferrovias e portos.
 
A" Orizon Valorização de Resíduos foi a primeira empresa a vencer leilão de energia realizado pelo governo com uma usina térmica que gera energia do lixo. A concorrência, realizada em 30.09.21, movimentou contratos para abastecer cinco distribuidoras do país. Com potência de 20 MW (megawatts), o projeto custará R$ 520 milhões e será construído em Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo. A potência é equivalente ao consumo de 320 mil pessoas, segundo a empresa vencedora. 
Foi o primeiro leilão de energia promovido pelo governo com possibilidade de participação de projetos de geração movidos a resíduos sólidos urbanos. Segundo a Orizon, a usina vai consumir cerca de 300 mil toneladas de resíduos por ano.
 
"O mundo está na fronteira de alterações substanciais no modo de fazer negócios. O movimento rumo a um capitalismo natural e uma economia circular está se tornando inevitável. O Ceará e o Brasil estão prontos para embarcar nesse hyperloop."