Há uma crise crescente na indústria de transformação brasileira, e isto preocupa não somente o empresariado, mas também o governo, incluídos os líderes do Congresso Nacional. A crise é grave e pode ser medida pela seguinte e severa informação: a indústria está produzindo hoje o que produzia no início deste Século XXI.
Hoje, a participação do setor industrial na formação do PIB nacional é de apenas 12%, percentual ridículo se comparado aos 40% dos anos 80 do século passado, como lembra o diretor superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções (ABIT), Fernando Pimentel, que falou ontem, com exclusividade, para esta coluna a respeito da questão.
Ele culpou os juros altos, o Custo Brasil (produzir no Brasil custa R$ 1,7 trilhão a mais do que nos países da OCDE). Uma pesquisa recente feita pela ABIT revelou que o item mais relevante desse Custo Brasil é o de empregar o capital humano.
Leia, a seguir, a entrevista que o presidente da ABIT concedeu à coluna:
Há uma crise na indústria brasileira de transformação. Qual é sua origem?
“Até meados da década de 80 do Século XX, a indústria de transformação brasileira respondeu por 25% a 30% do PIB do país. O Brasil teve, tem e continua tendo um processo de perda de densidade industrial extremamente grave. Este país, que já teve 28% do seu PIB gerados pela indústria de transformação, tem hoje apenas 12% do PIB gerados por ela; 14% a 15% de participação no emprego formal; arrecada 25% dos tributos federais e arrecada 21% da parte previdenciária.
“Ou seja, a indústria veio perdendo peso, mas, ao mesmo tempo, a carga que ela tem suportado de impostos e contribuições previdenciárias está bastante desproporcional ao que ela representa hoje na formação de nossa riqueza. Esta questão tem vários fatores, que vieram ao longo dos últimos 30, 35 anos, fazendo com que a formação do PIB seja decrescente. “
O que mais atrapalha, o que mais impede que a indústria brasileira se desenvolva?
Em um trabalho que fizemos em 2019 e que vem sendo atualizado, foi identificado que operar no Brasil, ou seja, o Custo Brasil – e aí não é só a indústria, mas todas as atividades econômicas – é da ordem de R$ 1,7 trilhão a mais por ano do que a média do custo de operação dos países da OCDE. Nós nem comparamos com os países da Ásia, principalmente com a China, porque as estatísticas não são tão estandardizadas.
“E quais são os itens que mais pesam nesse Custo Brasil adicional que é de R$ 1,7 trilhão? De que ele se compõe? Nós fizemos uma mandala, um trabalho muito bem-feito junto com o Movimento Brasil Competitivo, do qual resultou o seguinte: o item mais relevante é empregar capital humano. O segundo item mais relevante é honrar os tributos. O terceiro é dispor de infraestrutura adequada. O quarto item mais relevante desse Brasil excessivo é financiar o negócio. O quinto é atuar num ambiente regulatório jurídico eficaz. O sexto é integração com cadeias produtivas globais. E temos outros, como retomar ou encerrar o negócio; competir e ser desafiado de forma justa; acessar serviços públicos etc.
“Bem, a indústria é um setor de muita agregação de valor. Então, são várias as etapas da cadeia produtiva. E a situação brasileira vem apenando essa agregação de valor ano após ano, com aumento dos encargos, com impostos cumulativos, e tudo isso é impactado por essa matriz excessiva de custos que temos no nosso país.
“Assim, a taxa de investimentos decresceu. Decresceu porque o custo de capital no Brasil é, estruturalmente, muito mais alto do que nos países concorrentes, e não via de regra é mais alto do que a capacidade de os negócios darem o retorno adequado. Um estudo recente da Fiesp mostrou que a indústria manufatureira, para recuperar o atraso e ao mesmo tempo ficar atualizada, precisa de investir no setor de transformação uma montanha de R$ 456 bilhões. Por ano, nos próximos 7 a 10 anos. Ela está investindo hoje R$ 276 bilhões por ano. Então, você tem de aumentar em R$ 200 bilhões por ano para atualizar seu parque.
“Uma pesquisa recente feita pela CNI revelou que o maquinário está com 14 anos de idade, sendo que 33% dele já está no limite da vida útil. Isso acontece porque o país não tem crescido e as taxas de juros têm sido pornográficas para investimento, salvo em alguns momentos em que há algum tipo de subsídio, mas logo, logo isso não se sustenta por um crônico déficit público que acaba sendo financiado por taxas de juros muito altas e que nos coloca aí como líderes da taxa de juros básica, sem falar na taxa real dos empréstimos convencionais para os pequenos negócios.”
Os juros altos impedem a busca pelo financiamento?
“Quando você olha toda essa questão, surge clara a constatação de que a indústria tem sido apenada. Ela tem investido o que aguenta. Mas há exceções, tem lá a Embraer. Sim, tem. Mas ela (a indústria) tem investido o que aguenta, porque a capacidade de financiamento é limitada pelas taxas de juros. Então, o que acontece? Cerca de 70% a 80% dos investimentos que são feitos pelos empreendedores que nós temos aqui nas nossas enquetes são feitos com capital próprio. E quando você investe somente com o capital próprio, você não alavanca o crescimento.
“Ao mesmo tempo, nós temos passado por crises, por situações complexas. Tivemos a recessão de 2008-2009 que foi mundial, mas a recessão de 2015-2016 foi nacional, tendo custado quase 7% do PIB e 3 milhões de postos formais de trabalho. Foi uma recessão brasileira.
“Assim, olhando para todo esse cenário, a indústria está padecendo de questões fundamentais. Para termos um Brasil competitivo, temos de estabelecer alguns compromissos. Por coincidência, são 12 compromissos, que estão bem atrelados à matriz do Custo Brasil, de R$ 1,7 trilhão a mais do que a média da OCDE.”
Quais são esses compromissos?
“Primeiro: acesso a crédito competitivo. Não é possível você ter juros tão altos. Como você vai tomar riscos com essas altas taxas de juros? Segundo: simplificação tributária e eliminação da cumulatividade. Em tese, está ligado à Reforma Tributária, que ainda tem de passar pelas leis complementares. Terceiro: acesso à educação profissional e tecnológica de qualidade. Temos um problema de produtividade, que passa por investimentos na modernização de máquinas e equipamentos, tecnologia e inovação, e também na qualificação das pessoas para que possa ser atendida a exigência dos processos produtivos mais sofisticados.
“Quarto compromisso: ampliar e atualizar a infraestrutura digital. Você não consegue ter indústria 4.0 se não tiver boas conexões. Nós estamos com conexão 5.0, mas já há países com conexão 6.0. Quinto compromisso: a diversificação da matriz logística nacional. Não há capital estatal suficiente, e nós temos de investir muito em infraestrutura – estradas, portos, aeroportos, e vamos ter de contar com o capital privado.
“Sexto compromisso: reorganização da matriz energética para reduzir o custo da energia e o risco de desabastecimento. O Brasil é o país da energia barata e da conta cara pelos impostos e por todos os penduricalhos e programas que são subsidiados pela energia que a indústria paga. Sétimo compromisso: modernização da legislação trabalhista para a criação de empregos formais. Mais de 40% dos empregos no Brasil são informais. Emprego informal tem baixa produtividade, e isto está mais do que provado. Oitavo: a simplificação regulatória, por meio da profissionalização e independência das agências reguladoras. Isto tem a ver com evitar a captura dos mercados, seja pelos privados ou públicos. Novo compromisso: integração à economia global. O Brasil só tem acordo para valer com o Mercosul, mas não temos acordo de grande porte, como o que desejamos com a União Europeia. Não depende só de nós, mas deles (europeus) também.
“Décimo compromisso: Eficiência do serviço público brasileiro, que tem de ser melhorada e ampliada via transformação digital. Já há muita coisa feita, como o site gov.br, e isto é produtividade na veia. Décimo primeiro: melhoria do ambiente de pesquisa, desenvolvimento e inovação, temas absolutamente relevantes no mundo que nós vivemos. Décimo segundo e último compromisso: avanço das políticas públicas de promoção da sustentabilidade e melhoria das regulações ambientais. Não haverá progressos sustentável e sustentado sem que a agenda ambiental esteja fazendo parte disso.”
Então, está tudo diagnosticado, ou seja, parece fácil caminhar para as soluções. Ou não é assim?
“O país não carece de diagnóstico. Já temos bons diagnósticos. Mas temos tido uma incapacidade de fazer avançar a agenda do desenvolvimento industrial, e neste caso só temos colhido retrocessos, inclusive na própria indústria têxtil e de confecção como participação na formação do PIB.
“Eu diria que a história não tem um lance só para explicar tudo. É um somatório de decisões que vem prejudicando a indústria de transformação brasileira, que paga mais impostos, paga melhores salários na média, e que tem uma grande capacidade de alavancagem: para R$ 1 investido na indústria, ela puxa R$ 2,3 na economia como um todo. A contribuição dela é muito forte, mais forte do que a de outros setores. Um país deste tamanho tem de ter bem aproveitado o potencial do serviço, comércio, parte financeira, agricultura, agroindústria, mineração e energia.
“Temos tido sucesso no controle da inflação, graças ao Plano Real, temos os preços sob controle, mas precisamos superar esses gargalos, o principal dos quais é o custo do capital que é enorme e que torna o ambiente de negócio muito inseguro, levando o empreendedor a ser cauteloso nas suas decisões de crescer, de ampliar. Isto tudo somado explica bastante esta situação de muita dificuldade por que atravessa a indústria brasileira de transformação.”
Será, então, difícil reindustrializar o Brasil?
“Temos planos para a retomada da indústria. Foi construído com a CNI um documento espetacular. Não é um documento de texto, mas que revela as questões que devem ser atacadas. A reindustrialização do Brasil é essencial para que o país possa alcançar o desenvolvimento sustentável com justiça social. O Brasil vive um momento complexo, desafiador. Mas esse plano de retomada da indústria não pode nem vai ficar alheio ao movimento mundial. O mundo está sendo muito mais ativo nas suas políticas de desenvolvimento por força de todas essas alterações geopolíticas que estão a ocorrer.
“Por exemplo: em 2006 nossa participação na produção mundial de manufaturados era 2,58%. Em 2021, ela caiu para menos da metade – 1,28%. É, pois, imprescindível que modernizemos os esforços públicos e privados em favor da retomada dessa indústria. O bom é que nós temos o roteiro dessa retomada, que passa pelos princípios que eu citei anteriormente.
“Assim, não é por falta de diagnóstico. Nós estamos vivendo a dificuldade de encetarmos uma trajetória de crescimento que passe confiança ao empreendedor nacional e internacional para aumentar nosso investimento. Nós estamos investindo em torno de 12% do PIB. Nós temos de investir 25% do PIB, no mínimo, para crescermos em torno de 4% ao ano de forma sustentável e sustentada. Se tivéssemos crescido como o mundo cresceu nestes últimos 20 anos, estaríamos com uma renda per capita muito próxima da de Portugal e igual à do Chile. Mas estamos com US$ 8 mil a US$ 9 mil per capital, quando poderíamos estar com US$ 18 mil a US$ 19 mil.
“O que parece ser uma perda relativamente pequena de um ano, esse somatório de perdas nos coloca numa quadra de acúmulos de perda.”
O senhor está otimista ou pessimista?
“Eu tenho um otimismo cauteloso em relação à nossa reindustrialização porque teremos de ser muito cirúrgicos naquilo que iremos fazer, mas – antes de mais nada – é preciso que as pessoas entendem que nenhum plano de reindustrialização ficará de pé se não tivermos juros competitivos, uma carga tributária adequada, simplificada. Tudo isso está pronto para ser encetado.
“Mas somos uma democracia, as coisas acontecem de forma lenta. A Reforma Tributária, que foi aprovada agora, levou 30 anos; a Trabalhista durou também uma eternidade. A reforma Previdenciária, idem, e daqui a pouco teremos de fazer outra. Tudo tem demorado, mas é o jeito brasileiro que, porém, não tem nos colocado numa trajetória de dinamismo que nos faça realizar todo o potencial que nós temos. E agora temos de novo uma grande oportunidade para a questão energética, para a questão socioambiental, para a questão da bioeconomia. Temos muitas amarras, nós as conhecemos, sabemos como desamarrá-las.”