Não é por mera coincidência que se deu o nome de Luzes ao movimento filosófico que, entre o final do século XVIII e início do século XIX, fundamentou, no plano do pensamento, a sociedade moderna, a ordem social burguesa, o mundo que o capitalismo industrial vinha estabelecendo. Também conhecido como Iluminismo, esse movimento filosófico expressa a centralidade que a iluminação, que o tornar todas as coisas claras vai ganhar nas sociedades que se autonomeiam de ocidentais.
A própria ideia de esclarecimento, nuclear nessas formas de pensamento, remete ao gesto de tornar todas as coisas claras, de clarear todas as questões, de fazer com que todos os mistérios da natureza e da vida humana fossem iluminados pela luz da razão, do raciocínio, da inteligência, da ciência.
Mas esse apego as luzes, ao tornar todas as coisas claras não se reduziu ao plano do pensamento. Essas posturas filosóficas estavam ligadas a valorização, nessas sociedades, nas nossas sociedades, dos gestos e ações em busca de romper as trevas, de acabar com as zonas de sombra, de sair-se da escuridão. As sociedades ocidentais passaram a relacionar a escuridão, as sombras, as trevas, o negror a tudo aquilo que desvalorizavam, a tudo aquilo que viam como seu outro.
Essa forma de pensar acarretou, na vida cotidiana, nas atividades de governo, uma caça às zonas de sombra, às opacidades, a tudo que fosse noturno e recôndito. Esse desejo de trazer tudo à luz levou as nossas sociedades a cultivarem uma verdadeira obsessão pela iluminação, pela claridade, pela busca de dissipação de qualquer presença das trevas. Se hoje vivemos uma crise ambiental sem precedentes, em grande medida provocada pelo alto consumo de energia que implica banir de nossas vidas a escuridão e as trevas, isso se deve a essa verdadeira paranoia coletiva em relação a tudo que se considera obscuro, nebuloso, invisível, tenebroso.
O escritor japonês, Junichiro Tanizaki, em seu livro Em louvor da sombra, fala da diferença existente entre as sociedades ocidentais e orientais quando se trata da valorização ou desvalorização do sombrio, da escuridão, da noite. Ele lamenta que o modo de vida tradicional japonês, que se baseava no gosto pelos ambientes de iluminação débil, pela existência de áreas de sombra e de escuridão nos interiores das residências e mesmo nos lugares públicos, no gosto pelo noturno, pelas superfícies que não refletiam, mas que absorviam a luz, venha sendo substituído pelo modo de vida ocidental, com a disseminação entre a população japonesa de um gosto excessivo do feérico, das luzes neon, das placas e tabuletas iluminadas, das superfícies resplandecentes, do brilho, até no vestuário. Ele lembra que o gosto pelas roupas escuras vinha sendo substituído pelo gosto por roupas brancas e coloridas, numa tentativa frustrada de modificar o próprio amarelidão da pele, a falta de rosado e de brilho da tez de povos não brancos.
Tanazaki tangencia uma das primeiras consequências funestas dessa valorização das luzes, da claridade, da iluminação. Ele, talvez sem se dar conta, indicia a associação racista entre branquitude e claridade, entre o ser branco e o ser dotado de luzes, de inteligência, de sabedoria, de conhecimento, de racionalidade. As teorias raciológicas, as formas de pensar racistas, surgidas no mesmo contexto do Iluminismo, associaram inferioridade biológica, física, racial, inferioridade cognitiva e moral a dadas colorações da pele.
As raças mais escuras, menos claras, seriam inferiores, representariam estágios diferenciados na evolução das espécies.O ser claro, o ser branco e o ser provido da iluminação da consciência estariam diretamente relacionados. O ser negro, a negritude se assemelharia a viver na escuridão, nas trevas da ignorância, da superstição, quando não no tenebroso mundo do diabólico, do infernal, da magia, da heresia. As raças amarelas, também chamadas de mongoloides - numa referência ao povo mongol-, as quais pertenceriam os indígenas das Américas, com sua coloração baça, sem brilho, o que hoje ainda se nomeia através do conceito de pardo, seriam pessoas sem luzes próprias, não podiam ser pessoas reluzentes, pessoas brilhantes, adjetivos que utilizamos para elogiar alguém e que não conseguem esconder a relação positiva que estabelecemos com tudo que remete às luzes, à claridade, à iluminação.
A distinção que progressivamente se estabelece entre a vida urbana e a vida rural baseava-se na presença da iluminação noturna, na possibilidade que a cidade trazia de se vencer as trevas, de se viver sob o brilho feérico das lâmpadas, das luzes, das cores trazidas pela iluminação artificial. Enquanto a luz elétrica não chegou, para se tornar vitoriosa contra a escuridão rural, esse espaço foi visto como sendo palco de uma forma de vida inferior. As luzes da cidade fascinavam e atraíam os moradores dos campos, que para elas migravam.
Os dias nas cidades podiam se estender indefinidamente e não estavam dependentes e à mercê dos ritmos da natureza, do iluminar e do escurecer trazidos pelos dias e pelas noites, pela presença ou não do sol, da lua, das estações do ano. Viver sob as luzes passou também, por isso, a se associar à vida em liberdade. Era preciso dispor de luzes para se ser livre. Aquele que não dispunha da iluminação do conhecimento, da educação letrada, vivia imerso nas trevas, vivia escravizado a sua própria natureza. A metáfora da iluminação, do esclarecimento também se fez associar a dimensão política do libertar-se, do liberar-se, principalmente em termos individuais, uma ideia nuclear no liberalismo nascente.
Nesse sentido é muito interessante fazermos a leitura da autobiografia do escritor e poeta argentino Jorge Luís Borges, intitulada Elogio da sombra. Borges viveu nas sombras, viveu sob as trevas da cegueira durante grande parte de sua vida. Sua autobiografia é, ao mesmo tempo, um indício de como os ocidentais valorizam as luzes, a ponto de privilegiar o sentido da visão, o olho, que está associado ao ato de ver, que possui uma relação privilegiada com a iluminação e com o que seria a nossa inteligência, e uma crítica a essa redução da inteligência e da possibilidade de ver, de produzir imagem, de ter imaginação, àquele que possui as luzes da visão. A extraordinária obra literária que foi capaz de produzir, mesmo nas trevas, mesmo na escuridão, o faz dedicar um elogio as sombras em suas memórias.
Como um homem cego, Borges foi capaz de viver duplamente sem as luzes, sejam aquelas feéricas proporcionadas pelo uso abundante e, quase destrutivo, da energia elétrica, seja aquela associada a iluminação trazida pelo domínio da visão. Borges testemunha que nossa inteligência, nossa memória e nossa imaginação não estão necessariamente associadas a claridade, a ausência de sombras, de escuridão e de trevas.
É uma ilusão humana que essa obsessão pela iluminação materializa, a ilusão de ser possível vivermos sem zonas de sombra, sem áreas de obscuridade, sem espaços sombrios e tenebrosos. Como tão bem demostrou Freud, à medida que o inconsciente nos habita e nos move, estamos atuados, agidos por forças invisíveis, por desejos e pulsões pouco claros para nós. Guardamos em nós mesmos zonas de opacidade e de obscurantismo. As trevas nos habitam tanto quanto as luzes.
No livro memorável do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, ele nos apresenta uma outra cegueira, distinta daquela sombria vivida e descrita por Borges, uma cegueira branca, uma cegueira trazida pelo excesso de luzes, de iluminação. É uma magistral crítica as pretensões iluministas, racionalistas, burguesas, científicas ocidentais de tudo iluminar, de tudo esclarecer, de tornar tudo claro, ou seja, tudo branco. Saramago denuncia a cegueira representada pelo próprio excesso de iluminação, pelo excesso de luzes. Luz em demasia cega.
Diante de uma luz muito forte nossos olhos quedam incapacitados de ver, podemos ser enceguecidos pelas próprias luzes. A civilização ocidental, em busca de acabar com todas as trevas, com todas as zonas de obscuridade, na pretensão de tudo submeter às suas luzes, promoveu o colonialismo, o imperialismo, o genocídio, a tortura, a violência, a escravização, a exploração brutal dos corpos e das
subjetividades dos povos considerados mais escuros, de pele que não era clara. Em nome das luzes se produziu trevas. A iluminação feérica de suas cidades até hoje se faz às custas da exploração das riquezas de outros povos, do petróleo arrancado a ferro e a fogo, conquistado com guerras e carnificinas aterradoras, do gás e da construção de gigantescas hidrelétricas que destroem formas de vida humanas, a natureza e os próprios rios.
As mulheres, as crianças, os homossexuais, os ditos anormais, os loucos, os prisioneiros, todos aqueles que vivem nas zonas de sombra das sociedades ocidentais, foram sempre suspeitos e acusados, quando não nomeados, a partir da ideia que a eles faltavam as luzes, a clareza, a iluminação, trazidas pela razão. Assim como na sociedade japonesa tradicional, as mulheres ocidentais, durante muito tempo, viveram condenadas a escuridão de suas camarinhas, a sumirem suas silhuetas nas trevas do interior das residências, a viverem vidas obscuras, a não aparecerem sob as luzes do público.
Somente as prostitutas podiam vir a luz, mesmo que também se escondessem, para seu comércio marginal das carnes, nas vielas, nos becos, na iluminação difusa e sombria de bordeis, cabarés e lupanares. Também os homossexuais e as lesbianas foram por muito tempo condenados a se esgueirar nas sombras, para realizarem seus atos considerados nefandos, antinaturais e pecaminosos, para viverem seus amores proibidos, levando vidas a meia-luz, mantendo na escuridão do segredo seus desejos e sentimentos.
Para nós ocidentais, o mal mora nas sombras, todos os seres maléficos se aproveitam das sombras para atacar. Até mesmo a natureza nos mete medo em seus recantos sombrios e pouco iluminados, aí pululariam os seres da peçonha, da tocaia e da contaminação. Reservamos para os seres ditos perigosos as sombras do cárcere, do hospício, do reformatório, da caserna. No entanto, curiosamente, durante séculos, no Ocidente, o encontro com Deus, com a luz maior, se deu na escuridão e no silêncio da célula monacal, do convento, do seminário.
Mas, até Ele, hoje, está submetido as luzes espetaculares e espetaculosas dos cultos midiáticos, baixo a luz crua dos holofotes. Aqueles que se dizem seus representantes na terra não resistem ao desejo de aparecer, de se fazer notar, de se banhar nas luzes dos meios de comunicação, de vir à luz com seus milagres e com suas profecias, sob as fortes luzes dos refletores adquiridos e mantidos com o dízimo alheio requerido às claras, em todas as ocasiões. Talvez, precisemos, com urgência, voltar a valorizar as sombras, notadamente numa região onde a luminosidade de um sol branco e inclemente ameaça de ulceração todas as peles e o excesso de luzes ameaçam a nossa própria sanidade mental.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.