A pandemia do Covid-19 traz novamente à tona a dificuldade que a cultura ocidental e moderna tem em lidar com o sofrimento corporal e com a morte. O sofrimento físico foi se tornando algo quase vergonhoso, devendo ser vivido no âmbito da vida privada e do foro íntimo. Mostrar-se um corpo sofredor e sofrido, em público, passou a ser algo desagradável e inconveniente. Para os sofrimentos mais graves a modernidade criou o hospital, esse espaço de isolamento e de anonimato do corpo sofredor.
Um corpo que sofre, um corpo doente, nos lembra a morte, essa realidade incontornável, esse destino reservado a todos nós que, no entanto, tentamos de toda forma negar ou esquecer da existência. O mundo ocidental e moderno criou a morte solitária, anônima, escondida no interior dos hospitais. A morte que na Idade Média era um espetáculo público e partilhado com todos, vai se tornando o que ninguém quer ver, acompanhar ou saber, a não ser por obrigação familiar, afetiva ou profissional. A morte em massa e sem acompanhamento que se vê agora nas UTIs dos hospitais, é o coroamento desse processo.
A falta de empatia pelo sofrimento e pela morte de milhares de pessoas que assistimos vinda desde da figura do presidente da República, até de boa parcela da sociedade, que continua fazendo suas festas, suas reuniões, seus carnavais, seus exercícios em academias, suas compras, como se nada estivesse acontecendo, nasce desse processo histórico de negação do sofrer e do morrer, que foi trazido pela sociedade burguesa, sociedade fundada, afinal, no genocídio de populações inteiras nas terras conquistadas e colonizadas, na violência e no sofrimento da escravidão dos africanos, no deslocamento de milhões de pessoas de suas terras e lares, na exploração brutal dos corpos no trabalho.
O negacionismo, que graça em nossos dias, é fruto desse processo histórico de insensibilização diante do sofrimento e da morte do outro. O individualismo exacerbado, marca dessa sociedade de interesses e vidas privadas, faz com que somente o meu sofrimento e a minha morte tenham importância, no máximo a das pessoas mais próximas, embora estejamos vendo muitos idosos infectados e mortos pela ausência completa de cuidado por parte de jovens e adultos que os cercam. Aliás o negacionista maior da República, já no início da pandemia demonstrara total desapreço pela vida dos mais idosos, eles deviam ser imolados para que não faltasse a carne jovem para o moedor da economia capitalista.
Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.