O caderno de Economia e Negócios, do jornal O Globo, do último dia 3 de abril, trazia uma matéria de página inteira intitulada Nordeste-se, que tratava de estratégias de negócios e de marketing utilizadas pelas empresas nacionais ou multinacionais para conquistar mercado na região. O título dado ao texto transforma o substantivo Nordeste em um verbo reflexivo, Nordeste-se, que teria o sentido, como todo verbo, de exprimir uma ação, a ação de se tornar Nordeste, de se transformar em Nordeste. Ou seja, as empresas que se instalam na região, que buscam atrair os consumidores nordestinos, adotariam como estratégia se nordestarem, se tornarem Nordeste.
É evidente, de saída, que ao dizer-se a uma empresa, a alguém, que Nordeste-se, que passe a ser Nordeste, que o Nordeste deve ser uma maneira de ser, deve ser uma identidade bem definida, um modo de se apresentar sobre o qual há um consenso, uma certeza. Ser Nordeste seria uma espécie de atributo, de qualidade, de essencialidade, que algo ou alguém poderia passar a ter, poderia adquirir. Mas, segundo o teor da matéria, o que significa se nordestar, o que significa nordestar-se?
O subtítulo da matéria, embora um tanto obscuro, diferente do que se espera de um subtítulo, é bastante esclarecedor sobre o que significa nordestar-se, diz ele: “Marcas se adaptam com tapioca, suco de caju e malhação com música junina”. O que significa uma marca se adaptar com tapioca? Embora a redação seja precária, podemos supor que passar a oferecer tapioca em seu cardápio é nordestar-se (embora tapioca seja vendida, hoje, em qualquer lugar do Brasil, até no exterior). O mesmo, suponho, acontece ao se oferecer suco de caju (embora suco de polpa de caju seja oferecido em todo território nacional) e música junina para malhação.
Quando lemos o texto da matéria assinada por Raphaela Ribas, é realmente isto que é nomeado de nordestar-se: a empresa de lanches Megamatte, mesmo com seu mate com a letra t dobrada, nordesta-se ao oferecer tapioca em seu balcão; a Coca-Cola, a megamultinacional das bebidas, nordesta-se ao produzir uma bebida a base de suco de caju, com a marca Del Valle Kapo (mais nordestina impossível!), já que não conseguiu se apoderar da fórmula da cajuína, como fez com a fórmula do refrigerante maranhense Jesus; a rede de academias Bluefit, mesmo com esse nome estrangeirado, nordesta-se ao utilizar como acompanhamento para a malhação o axé e a música de São João (supomos que seja música junina que se destina a todo um ciclo de festas que vai além daquela dedicada ao santo dorminhoco), segundo a matéria, “incluindo um gingado que só o Nordeste tem” (o Nordeste é mesmo surpreendente, um espaço, um recorte espacial que possui gingado); e, mais curioso ainda, a rede de farmácias Pague Menos nordesta-se ao vender Água Rabelo. A fabricante de piscinas iGui, abriu uma nova fábrica no Ceará e, dada a temperatura elevada da região, resolveu nordestar as suas piscinas de material sintético adicionando um revestimento em pedra na borda do deque, pois sendo térmico ele alivia as altas temperaturas (possivelmente poderão ser vendidas, com sucesso, para os países árabes).
Essas seriam estratégias de vendas, adotadas por essas empresas, para cativar clientes na região Nordeste que, antes do golpe de Estado apoiado pelo jornal carioca, havia se tornado a segunda região no ranking do Índice de Potencial de Consumo, perdendo esse posto, que havia conquistado no ano de 2008, no ano de 2020, sendo ultrapassada pela região Sul, principalmente com a retração do turismo, trazida pela pandemia, mas também, e isso a reportagem não fala, pelo crescente desemprego e pela crescente miséria trazidos pela crise econômica e pelo ataque as políticas sociais protagonizado pelas gestões federais pós-golpe. Mas, segundo prevê o diretor do IPC Maps, responsável pela medição desse índice, Marcos Pazzini, o Nordeste logo recuperará esse segundo posto e as empresas não podem “perder a jangada” (deve ser um exercício de nordestar-se a linguagem da matéria).
Além do risível que é essa ideia de que existe um gingado do Nordeste, sabores nordestinos, um modo único de consumir nordestino (muitas das coisas que são enumeradas como sendo nordestinas na matéria são de consumo nacional), o que se observa é a articulação entre a folclorização da cultura nordestina, do pretenso ser nordestino e a captura pelo capital desse Nordeste folclorizado.
Não é mera coincidência que o Nordeste é uma região onde se destaca o que se chama de folkcomunicação, ou seja, a utilização de objetos, temas, matérias e formas de expressão nomeadas de folclóricos, como instrumento de comunicação e de marketing. Nesse processo, as matérias e formas de expressão populares, as manifestações culturais, literárias e artísticas das camadas populares sofrem um duplo processo de captura e transformação de sentido.
Num primeiro momento, as manifestações culturais dos pobres, dos pretos, dos indígenas, são apropriadas por estudiosos e intelectuais das classes dominantes, que fazem do registro e classificação dessas manifestações a sua própria obra. A folclorização, a transformação dessas atividades culturais e cultuais dos pobres, no que chamam de matéria folclórica, de fato ou objeto folclórico, é o primeiro processo de desapossamento que sofre os agentes dessas manifestações ditas folclóricas.
Embora seja um processo cheio de ambiguidades, já que muitos dos chamados mestres populares passam a ser conhecidos e reconhecidos a partir de suas relações com esses entusiastas e divulgadores oriundos das elites, que podiam e podem demonstrar genuíno interesse por essas atividades, retirando-as, muitas vezes, não só do anonimato, mas da marginalidade e até da ordem da contravenção, como foi o caso, em dado momento, da capoeira, dos sambas, dos cultos de matriz africana e indígena, etc.; não deixa de ser um processo de expropriação dos bens simbólicos das camadas trabalhadoras.
Se não bastasse a expropriação do valor gerado pelo trabalho, a ordem capitalista, através de agentes como os folcloristas, expropria os valores simbólicos das classes trabalhadoras.
Mas quais são as consequências problemáticas da folclorização? Primeiro, essas manifestações são atiradas para o campo da tradição, cobrando-se delas que não se atualizem, que permaneçam empalhadas, ao longo do tempo (o que nunca acontece). Ao serem tradicionalizas, elas são atreladas a uma temporalidade passada e passadista, tendendo a ser vistas como manifestações extemporâneas, nunca contemporâneas, pertencentes a outros tempos, que teriam ficado para trás.
A pretexto de preservarem e se conservarem como fato folclórico, os folcloristas (e mesmo aqueles intelectuais que passaram a adotar o conceito de cultura popular, criticando a noção de folclore) modificam as matérias e formas de expressão que registram, classificam e estudam: transformam o que é transmitido pela oralidade em texto escrito, perdendo as dimensões corporais, gestuais, sonoras, que são centrais nessas manifestações; trazem para as cidades, urbanizam e intelectualizam as manifestações culturais do campo; atribuem autoria a manifestações culturais anônimas; transformam em profano aqueles rituais que são da ordem do sagrado; atrelam essas manifestações a identidades espaciais, que elas originalmente desconhecem, de nômades elas passam a ser territorializadas (a literatura de folhetos é atrelada a identidade regional nordestina, o maracatu se torna folclore pernambucano, o reisado, folclore alagoano, etc).
É a essa territorialização das manifestações culturais das camadas populares, dos costumes alimentícios, dos rituais, das danças e sonoridades vindas dos meios populares, que o nordestar-se da reportagem de O Globo remete. Num segundo movimento de captura, essas manifestações culturais populares, suas artes e costumes, depois de folclorizadas são utilizadas pelo capital, pelas empresas, para “regionalizarem” suas marcas, seus cardápios, seus portfólios de mercadorias.
Uma vez que os folcloristas e adeptos da chamada cultura popular fizeram o trabalho de ressignificar essas matérias e formas de expressão a partir da vinculação delas a um dado território, no caso, a região Nordeste, as empresas reforçam essa imagem folclórica e folclorizada da cultura nordestina, ao trazer esses pretensos ícones da cultura regional, esses pretensos representantes do que seria uma cultura regional, como se isso efetivamente existisse (porque um guaraná que só é vendido, só é popular no Maranhão, como é o Jesus, se torna cultura nordestina, só por que o Maranhão faz parte do Nordeste? A cajuína sequer é conhecida em dados estados do Nordeste. Hoje a tapioca tem muito pouco a ver com a tapioca tradicional, se faz tapioca até de Nutella e existem franquias de tapiocaria até em aeroportos internacionais), para servirem de marcas do próprio regional em suas atividades empresariais.
O nordestar-se, portanto, é tomar alguns desses ícones folclorizados do regional e transformá-los em lucrativas mercadorias, o que não deixa de reforçar esse imaginário, pelo qual a região é, muitas vezes, motivo de preconceito. Só o fato de se considerar que comer uma tapioca, tomar suco de caju, comprar uma piscina com borda de pedras, dançar axé e música junina faz da empresa multinacional ou de marca estrangeirada (numa clara indicação de que nossas elites empresariais são colonizadas, até porque seus consumidores, em sua maioria das classes A e B, também o são), faz de alguém nordestino, ou pior, Nordeste, mostra o quanto o regionalismo nordestino e essa pretensa identidade regional merece ser questionada e não reforçada por esses gestos de folclorização, que não deixam de ser reforçados pela própria matéria jornalística.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.