Fanatismo e intolerância: a perigosa união entre religião e política

Um dos princípios fundamentais do Estado moderno é a sua laicidade. Nascido como resultado das chamadas revoluções burguesas, o Estado moderno ou o Estado democrático de direito, surgiu da derrocada das monarquias absolutistas, nas quais, a figura do rei, do governante, se legitimava através de sua pretensa encarnação da própria vontade divina. Sendo reis ou imperadores por terem nascido como herdeiros ou herdeiras de um trono, acreditava-se que eles ou elas teriam recebido, no nascimento, uma missão atribuída pelo próprio Deus. No caso da Inglaterra, por exemplo, o rei Henrique VIII tornou-se o chefe supremo da própria religião nacional, o Anglicanismo, quando rompeu com o catolicismo e a Igreja de Roma.

O rei Charles III, recém-nomeado, recebeu a coroa numa cerimonia religiosa, em que se supõe que tenha recebido a própria unção divina para realizar sua missão de chefe de Estado. No entanto, a revolução burguesa ocorrida na Inglaterra, em 1868, conhecida como Revolução Gloriosa, instituiu uma monarquia parlamentar, subordinando os poderes do monarca ou da monarca a uma Constituição, à observância das leis, perdendo assim seu poder discricionário, baseado na mera vontade pessoal, e separou o exercício do governo, que passou a ser chefiado por um primeiro-ministro, um parlamentar eleito e indicado pelo partido mais votado em eleições gerais, do exercício da representação do Estado, mantido com o ou a monarca reinante.

É fundamental que haja a separação entre o poder político, nascido da militância partidária, baseada em programas de atuação e de governo, em projetos para a administração pública, e o poder conferido pelo exercício de atividades religiosas ou de culto, que devem pertencer ao âmbito da vida privada e da vida íntima. Foi na sociedade moderna que se tratou de separar o que seria do domínio público daquilo que ficaria atinente à esfera privada, com o Estado não devendo intervir ou interferir nas escolhas pessoais ou individuais, respeitando o que seria a intimidade e a privacidade, princípios e valores fundamentais da vida burguesa e moderna. O Estado não pode sequer penetrar, através de seus agentes, na residência de alguém, sobretudo durante a noite, sem um mandado judicial, sem que essa ação esteja motivada por e amparada em decisões legais.

A liberdade de culto, a liberdade de cada pessoa professar ou não uma crença religiosa, desde que o faça obedecendo as leis vigentes, é um dos fundamentos básicos da cidadania moderna. Com a modernidade não é permitido que qualquer Estado e, portanto, qualquer governo que o dirige, manifestar preferências religiosas, muito menos possuir uma religião considerada oficial. É obrigação do Estado garantir que todas as crenças religiosas possam se expressar em segurança, coibindo discriminações e atitudes de perseguição, intolerância ou discriminação por motivos religiosos.

Para garantir a equidade de tratamento entre todas as crenças religiosas, elas devem se manter equidistantes das lutas político-partidárias, devem se limitar a orientar genericamente os seus fiéis para que exerçam o direito de voto conforme os valores e princípios que cada denominação religiosa defende. O exercício da autoridade religiosa já confere um enorme poder que não deve se misturar e se sobrepor aos poderes constituídos.

Não é aconselhável que a escolha de governantes, de parlamentares ou de juristas, que compõem os três poderes que constituem a espinha dorsal do Estado moderno: Executivo, Legislativo e Judiciário, se dê por motivações religiosas ou tendo a crença ou a fé que professam como critério de escolha.

O que vemos no Brasil, nos últimos anos, é um perigoso processo de corrosão da laicidade do Estado, com projetos de poder político e projetos de poder de base religiosa se articulando e se sobrepondo. Agrupamentos religiosos não se limitam a atuar politicamente no seio da sociedade civil e em defesa de seus interesses e pontos de vista, o que é legítimo e esperado numa sociedade democrática. Vemos setores religiosos militarem no sentido de um projeto de poder político, de uma ocupação das instituições do Estado, submetendo-o as suas crenças, o que ameaça a universalidade das instituições de Estado, um dos princípios básicos do poder político moderno.

Se o Estado é ocupado por facções religiosas e não por facções políticas, legitimamente eleitas e escolhidas pela população, corremos o risco de termos um Estado faccioso, um Estado que tomará partido por dadas crenças e valores religiosos. Isso é um passo para termos um Estado que promoverá perseguições de cunho religioso, notadamente daqueles que não professam nenhuma crença e que também devem ser respeitados em seu direito de descrer.

A perigosa mistura entre religião e atividade política, como vimos no passado da humanidade, etapa que pretendíamos ter superado, leva ao fanatismo e a intolerância de cunho religioso. Se crenças fanatizadas e intolerantes contam com a mão do Estado, com os instrumentos que ele dispõe de repressão e de violência, estaremos no pior dos mundos, pois agressões e até morticínios e extermínios poderão ser cometidos pelas forças do Estado tomando como justificativa e motivação crenças de caráter religioso. Tanto a religião, quanto a política, são mobilizadoras de paixões, de sentimentos, de emoções, podendo ser motivo de ações poucos razoáveis.

Em nome da racionalidade do Estado, da razoabilidade de suas ações, foi que os pais do Estado moderno aconselharam a separação desses dois campos da vida humana que, uma vez misturados, podem ser fonte de irracionalidade e passionalidade nas ações de governo.

No Brasil contemporâneo, vemos como a própria justiça eleitoral, e o Judiciário de uma maneira geral, age com leniência quando se trata de preservar um dos princípios básicos de nossa organização política: a laicidade do Estado. Deixa-se que candidatos se inscrevam nos pleitos eleitorais com seus títulos religiosos (padre, frei, bispo, pastor, irmão, diácono); não se exige que as autoridades religiosas se afastem dos cargos que exercem nas instituições religiosas, como se exige a desincompatibilização daqueles que ocupam cargos públicos; não se coíbe a prática de campanha eleitoral explícita no interior de templos religiosos, fazendo das casas de culto verdadeiros comitês eleitorais de seus dirigentes ou daqueles que seus dirigentes apoiam; permite-se que os órgãos de mídia de propriedade de denominações religiosas façam campanha aberta para seus candidatos.

Essa negligência em coibir ações e práticas que conflitam com o princípio da laicidade do Estado, rompe com um princípio básico da democracia moderna e que deve ser observado no processo eleitoral: a paridade de armas. Da mesma forma que o Judiciário não coíbe a transformação das instituições de segurança pública e as próprias Forças Armadas em locais de realização de atividade de cunho político-partidário, o que é também inconstitucional (em 2018, assistimos Jair Bolsonaro lançar sua candidatura a presidência da República no interior de uma instituição militar, com a ruptura do próprio princípio da disciplina, que deve presidir essas instituições, pois o que vimos foram soldados em formação se transformarem em militantes entusiastas e barulhentos de uma candidatura), não proíbe que atividades de campanha sejam feitas em instalações de culto.

É escandaloso que o próprio órgão máximo do poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, tenha um símbolo religioso adornando o plenário onde se realizam as sessões de julgamento de todo o colegiado, localizado bem atrás da cadeira do presidente da entidade. Não é aceitável que o plenário da Câmara Federal ou do Senado Federal sejam palco para orações coletivas, manifestações de cunho religioso, a não ser em caso específicos de comemorações e homenagens, que, por seu turno, devem estar abertas e disponíveis a todas as formas de crença, inclusive àqueles que são ateus ou agnósticos. Também não é aceitável que repartições públicas ou bens móveis e imóveis pertencentes ao Estado portem símbolos religiosos de qualquer natureza. Os funcionários públicos deveriam ser comunicados e advertidos de que suas crenças religiosas devem ser professadas no âmbito do privado, em sua vida pessoal.

As cenas que assistimos no último dia 12 de outubro, no entorno e no interior da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, devem servir de alerta em relação aos perigosos caminhos que a vida política no Brasil está trilhando. Aquelas cenas devem ser tomadas como sintomas de um fenômeno muito mais generalizado e muito mais profundo que está corroendo as bases do Estado democrático de direito e do Estado laico no país.

Partidários de uma candidatura a presidência da República querendo transformar uma cerimônia de cunho religioso em um comício, em uma reunião política. Um candidato a presidente que, sem ser convidado, se acha no direito de transformar atividades de cunho religioso, como o Círio de Nazaré e a missa de ação de graças pelo dia da Padroeira do Brasil, em atos de sua campanha. Senhoras brancas e de classe média, furiosas, querendo proibir que os sinos da Basílica fossem tocados, pois estariam interrompendo a manifestação político-partidária, os discursos inflamados e os gritos em defesa de seu “mito”.

Essas cenas por mais patéticas que possam parecer, não devem ser só motivo de riso ou espanto, elas deixam claro que há forças políticas e forças religiosas, que há agentes políticos e religiosos capazes de perseguir e violentar quem pensa diferente deles, tanto no campo das preferencias políticas, quanto no campo das crenças religiosas. Fica claro que aqueles que vivem acusando a esquerda de pretender fechar templos religiosos, são e serão capazes de perseguir e proibir que dadas crenças religiosas se manifestem.

As milícias de cunho paramilitar e religioso, que já perseguem e destroem templos de religiões de matriz africana, poderão se voltar contra espíritas, católicos, islamistas, denominações rivais evangélicas, etc. Aprendamos que o fascismo começa atacando o seu vizinho, aquele de que você não gosta por algum motivo e, por isso, você não faz nada, mas um dia ele termina chegando em você.

A intolerância e o fanatismo, que vemos se apossar de muitos eleitores e crentes no Brasil, é uma antessala para a barbárie e o massacre de cunho religioso e político, que tantas vezes já vimos acontecer na história da humanidade. É preciso que as autoridades competentes tomem as providências imediatas enquanto ainda é tempo. A omissão pode significar a destruição das instituições democráticas e do Estado laico, entre nós, conquistas civilizacionais das quais não devemos abrir mão.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.