A Amazon Prime Vídeos tem anunciado com estardalhaço a filmagem de uma nova minissérie nacional, que será mostrada para vários países, intitulada Cangaço Novo. Dividida em oito episódios com duração de uma hora, a trama se passa numa cidade fictícia do interior do Ceará chamada Cratará (a remissão a carcará, a famosa ave sertanejada que deu nome a composição de João do Vale e José Cândido, que lançou para a fama Maria Bethânia, no show Opinião, é explícita. Carcará é também o título de um livro de Ivan Bichara, lançado em 2019, que trata, justamente, da vida de uma pequena cidade do sertão da Paraíba, amedrontada com a possibilidade de ser invadida pelo bando de Lampião), em que a memória do cangaço se articula com o que seria a prática do que se vem chamando de novo cangaço, ou seja, a invasão diurna ou noturna de pequenas cidades do interior por quadrilhas de assalto a banco que, fortemente armados, tomam como reféns os bancários, clientes ou qualquer morador que esteja passando nas ruas, fazendo-os de escudos humanos, imobilizando as forças policiais e causando pânico na população.
O personagem principal, Ubaldo, interpretado pelo ator pernambucano Allan Souza Lima, segundo a sinopse distribuída, é um bancário que vive infeliz em São Paulo, (o primeiro entre vários clichês e lugares comuns presentes no roteiro: o nordestino que vive infeliz em São Paulo e espera uma oportunidade para voltar ao sertão) e não se recorda de sua infância. A volta ao sertão se dá porque ele descobre que tem uma herança para receber (e como veremos essa herança não é apenas material, ele vai herdar também toda uma herança simbólica: a fama e prestígio do seu pai, que foi cangaceiro) e tem duas irmãs que aí vive e ele desconhecia: Divânia que chefia um culto a memória de seu pai, um culto ao cangaceiro morto e Dinah, única mulher a fazer parte de uma quadrilha que assalta bancos.
Ou seja, as duas irmãs representam a ligação entre o que seria o velho e o novo cangaço, a memória e a história que se desenrola no tempo presente. Ubaldo, por sua semelhança com o pai-cangaceiro, também passa a ser objeto de culto por parte da população de Cratará, assim que ele chega ao sertão. Ele é chamado a cumprir o que seria seu destino (outro clichê dos clichês, os sertanejos, notadamente os pobres e crédulos, teriam suas vidas governadas pelo destino - uma versão moderna da tragédia grega -, teriam um fadário, uma sina, uma vida marcada para se desenrolar de dada forma), ou seja, tornar-se também cangaceiro, chefe de bando, no caso da quadrilha do novo cangaço (um claro eco de visões eugênicas e deterministas biológicas: o sangue, o nascimento, a hereditariedade definiriam a psicologia, o caráter e o percurso da vida dos indivíduos, através do que seria um atavismo, uma índole que correria nas veias).
Pensado para ser mais um minissérie de ação, no modelo hollywoodiano, até porque é feito para ser exibido em vários países, nela Ubaldo enfrentará bandidos, assassinos, policiais corruptos, explodindo literalmente várias pequenas cidades, bem no estilo mundo cão dos programas policiais de hora de almoço, enquanto “embarca em sua jornada, tentando desesperadamente manter seus valores morais sobre controle” (frase enigmática da sinopse, que parece nos dizer que todas ações criminosas que Ubaldo realiza o faz por uma espécie de destino, do imperativo do sangue e da tradição, da memória, o faz por injunção das circunstâncias, não correspondendo ao que seriam seus verdadeiros valores, seu verdadeiro eu, pois há quem acredite que somos possuidores de uma essência, de uma verdade, de uma índole única e singular, que pode permanecer oculta sob o que fazemos e o que dizemos).
É lamentável que o cinema, que a literatura, que a produção audiovisual para TV, que a pintura, que a escultura, que a produção intelectual e que as artes, tão fundamentais para a produção do imaginário, não consigam fugir do lugar comum, do clichê, do déjà vu, quando se trata de abordar o Nordeste. A minissérie presta de saída um desserviço ao reafirmar o cangaço e o cangaceiro como sendo objetos de culto regional. Não deixa de ser verdade que há um culto ao cangaço na região, inclusive nos meios acadêmicos e políticos, mas é inaceitável que se cultue figuras como o cangaceiro que é, na verdade, um culto a mitologia da valentia, ao machismo, a uma masculinidade que se afirma através da competição e da violência aberta, a resolução sanguinária das tensões e conflitos.
O cinema, o audiovisual, o teatro regional, ao invés de pôr em questão essa mitologia regionalista do cangaço, não para de reproduzi-la, de reafirmá-la, trazendo, inclusive, de modo incorreto, para a região, um fenômeno que se passa, em grande medida, fora da região. O chamado novo cangaço, representa, primeiro, um uso indevido dessa categoria, para nomear um fenômeno social e historicamente muito diverso do que foi o cangaceirismo no Norte/ Nordeste, e, em segundo lugar, ocorre predominantemente na região Sul e Sudeste. As obras publicadas, que tratam desse fenômeno, o localizam no interior dos estados do Paraná, São Paulo e Minas Gerais.
O livro do agente da Polícia Federal, Eduardo Bettini, intitulado Mamba Negra: o combate ao novo cangaço (título que demonstra que as forças de segurança no Brasil estão marcadas pelo racismo, mesmo que não tenha consciência disso: mamba negra é uma cobra africana, ou seja, associa-se o crime, a maldade à África e à negritude), é o relato do combate a essas quadrilhas de assalto a banco que atuam notadamente em São Paulo e Paraná, porque têm o Paraguai como rota de fuga. O geógrafo e advogado Mauro Gil Campos de Oliveira, em seu livro Novo cangaço no Sul de Minas, narra os ataques a agências bancárias de pequenas cidades daquele estado.
Apenas no livro do servidor da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, Leonardo Santana Santos, Novo Cangaço: análise criminal, é que, desde a capa e a sinopse, há essa associação entre os assaltos a banco realizados em pequenas cidades e o Nordeste (a capa não podia ser mais clichê, cheia de cactos, corpos e armas de cangaceiros), no caso, as cidades do interior baiano. Ele também nomeia o fenômeno de “Cangaço noturno”, dado a hora que os assaltos costumam ocorrer.
O que aproximaria o dois “cangaços” seria unicamente a invasão de cidades pequenas e o pânico que isso infunde na população, pois os armamentos e as indumentárias portados pelos assaltantes, os modos operandi, os objetivos são completamente diferentes. O uso do termo cangaço para nomear esse fenômeno só demonstra a falta de imaginação.
É justamente a falta de imaginação que mais preocupa quando se trata da produção cultural em torno do Nordeste. Os diretores Aly Muritiba e Fábio Mendonça sequer inovaram na locação: a cidade de Cabaceiras, na Paraíba, a Roliúde brasileira, da qual já identificamos até as pedras e os cactos, de tantos filmes rodados nas mesmas paisagens. A produção da O2 Filmes, reuniu cinco roteiristas (Fernando Garrido, Mariana Bardan, Eduardo Melo, Erez Milgrom e Viviane Pistache) para imaginar uma trama tão lugar comum, tão desprovida de criatividade. O imaginário, a imaginação, o conjunto de imagens que norteiam a vida social de uma dada população são fundamentais em suas ações e projeções de futuro.
Como podemos esperar uma transformação, uma mudança na sociedade nordestina se continuamos repondo imaginários, memórias como a do cangaço, que deve ser compreendido como fenômeno histórico, mas de modo crítico, justamente para que não seja mitificado e cultuado, pois ele não serve de modelo para nada de novo que se queira criar na região. Como é um produto pensado para exportação, a minissérie mais uma vez vai reforçar o imaginário em torno do Brasil como lugar do crime, da violência, da corrupção, da crendice atrasada, de valores morais tradicionais e atávicos. Se nos filmes americanos, bandido, traficante ou golpista fogem para o Brasil e aqui encontram guarida, é triste ver o audiovisual nacional reforçando essa visão estereotipada.
A imaginação deve servir para pensarmos mundos outros possíveis, Nordeste em devires, possibilidades de outras formas de ser que já se encontram em germe no presente regional. O imaginário serve para abrir no presente brechas para a passagem de futuros possíveis não para repor no presente um passado que devemos deixar atrás. Fazer do presente uma continuação e uma reposição do passado, com o qual devemos romper criticamente, é um gesto conservador e que produz uma visão distorcida do próprio presente. O novo cangaço não é cangaço e nada tem de novo.
A criminalidade não está no sangue, nem se transmite simplesmente por herança e por memória, muito menos deve ser objeto de culto. Ninguém carrega um destino, ninguém traz uma sina por herança, ninguém tem que obedecer aos ditames de uma memória pretensamente heroica, em detrimento de seus valores. Cangaceiro só foi herói nas leituras equivocadas de certa esquerda brasileira, embora não tenha se reduzido a ser bandido, ele foi gente em suas circunstâncias, que não se repetem, por isso não pode existir novo cangaceiro. Essas continuidades estabelecidas entre momentos históricos diversos servem apenas para reforçar a imagem do Nordeste como um espaço preso a um tempo cíclico, a um tempo repetitivo, a um tempo que não traz a mudança, mas a reposição do mesmo. Visão do tempo e do espaço que só interessa a quem domina essa região, cuja dominação não quer ver abalada ou transformada pela história.