Abandonei casa, marido e cidade para cuidar da minha mãe e sei que ela faria bem mais por mim

A filha que desafia o tempo e a distância para ver a mãe curada e não poupa esforços na afirmação diária do amor

Daniela não consegue mais falar da mãe. Quando tenta, naufraga. Sobe um nó na garganta, aperto no peito. Chora. Não era assim antes. Essa angústia tem um ano. Foi quando uma doença chegou e transformou.

É um nome complicado, Granulomatose com poliangite. Um tipo de vasculite – aquele conjunto nefasto de enfermidades que provocam inflamação dos vasos sanguíneos. E ainda querem que Daniela fale da mãe. Ela não consegue.

Então escreve, procura colocar em verbos o inominável. Destaca a conexão. Possuem espécie de ímã, ligação ultra umbilical. Se uma sente, a outra sente. Se uma está bem ou mal, a outra incorpora o espírito, a atmosfera. E são capazes de fazer tudo uma pela outra. Tudo mesmo.

A filha talvez não tivesse dimensão até a mãe precisar comprovar. Maria José ficou internada durante um mês devido a sintomas esquisitos. Assim descobriram a tal doença autoimune quase impronunciável. Se não fosse localizada, a mulher morreria logo. 

Descobriram, mas mesmo assim os rins pararam. Maria ficou com anemia profunda. Foi um tempo muito cruel. Daniela não pensou duas vezes: abandonou vida, casa, marido e até cidade para ir atrás do amor. Ela havia saído do município de Água Fria, interior da Bahia, cedo, contrariando a vontade da mãe. Casou e foi para longe, para Fortaleza. Deixou a falta.

Agora era hora de voltar. Não precisava ser assim, não queria que fosse assim, mas é como as coisas são. Tocou as mãos da mãe, passou os dedos pelos cabelos dela. Disse que tudo ficaria bem. Dois meses nesse compasso, e as coisas realmente melhoraram. Maria José saiu do hospital. Sorriso enlargueceu, alívio pairou. Qual música a gente toca nessas situações?

Foi breve, porém. Três meses depois, Daniela retornou para a Bahia e encontrou a mãe com depressão e transtorno de ansiedade. “Foi a fase mais difícil da minha vida”, confessa. “Me doeu bastante ter que parar tudo à minha volta. A solidão, a saudade do meu marido, meu porto seguro, é insuportável”. Chora de novo enquanto escreve. Palavra suada de dor.

É tudo bastante voraz, e a peleja de ver quem ama definhando só aumenta. Maria passou a depender integralmente de Daniela. O apoio da família continua essencial – ela sabe e realça. Porém as noites não deixam de ter tristeza e agonia. Aquela mulher outrora tão vívida, disposta e ativa agora está ali, fraquinha, cabisbaixa. Isso não é só injusto. É perverso.

A memória surge como elemento salvador nesse caldo amargo. Quando lembra, Daniela encontra força. Age em meio ao pranto.

Maria José criou a filha sozinha numa época em que ser mãe solo era, além de obstáculo, ofensa social. Professora, formou centenas de crianças e jovens na pequena cidade, e era exemplo de conduta e trabalho.

Na cozinha de casa, era outro exemplo: de capricho. O melhor tempero era o dela. A pequena filha celebrava a panela fumegando com o prato quentinho, o cheiro de delícia se espalhando pelos cômodos. Alguns momentos da vida poderiam não passar. Congelar naquele instante em que tudo é sossego e certeza.

“Espero que ela volte a ser metade do que era. Que possamos, juntas, vencer tudo o que vier pela frente. Que ela tenha vontade de viver novamente e faça o que mais gosta. Sei que, se eu estivesse no lugar dela, ela faria muito mais do que estou fazendo. Tenho certeza”.

Pois, Maria José, asseguro a você: seus 61 anos de idade vão se desdobrar em ainda mais idade para cumprir outros encantos. Você já melhorou, estar com a filha reacendeu a saúde. Segue o tratamento com toda a força e fôlego. Vai passar. Acredita? Palavra.

E, você, Daniela, realizou um feito bonito: conseguiu falar de sua mãe, olha só. O nó na garganta ainda enlaça, eu sei, e o aperto no peito comprime. Mas agora temos isto, este punhado de expressões bordando o amor. Elas testemunharão outros feitos possíveis, desejos que vocês duas não dizem nem a vocês mesmas. Palavra também.

Alguém um dia escreveu que duas pessoas são muitas coisas. E que serão derramadas estrelas cadentes nos corações que continuam tentando. Daniela e Maria José já sabem voar. Tem algo maior que as duas e o mundo: o sentimento.

 

Esta é a história de amor da empreendedora Daniela Lima e da mãe, a aposentada Maria José Lima. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor