Por que o sumiço de Belchior ainda fascina após sua morte

A última década de vida de Belchior segue envolta em mistério e, ano a ano, a mitologia em torno de seu desparecimento ganha novas camadas

Nos últimos anos de sua vida, Antônio Carlos Belchior protagonizou uma façanha que contraria a lógica. Reafirmou seu nome e chegou forte a novas gerações, sem gravar canções inéditas, lançar discos ou se apresentar ao vivo. Todo mundo conhece a história: Belchior sumiu. Enquanto se discutiam as razões do exílio voluntário, então (e ainda) desconhecidas, suas canções serviam de trilha sonora para o mistério. 

Gradualmente, o cancioneiro de Belchior tomou novo fôlego e se tornou, mais uma vez, a verdade existencial de uma geração. Como se adivinhassem os tempos sombrios que estavam por vir, os fãs bradavam que “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” e que “a felicidade é uma arma quente, quente”.

Sumido, o trovador cearense era ouvido em barzinhos, à voz e violão; em grandes e pequenos shows de admiradores diversos; em karaokês; e nas vitrolas da recém-ressuscitada moda do vinil. 

O desaparecimento de Belchior se deu sem aviso. Há cerca de 15 anos, ele saiu de cena quase completamente. Por uma década, o contato com velhos ambientes - o palco e os estúdios -, com a família e amigos tornou-se mínimo. Multiplicaram-se as dívidas, cresceu o mistério, ressignificou-se sua lenda pessoa e nasceu o mito.

Desaparições e aparições

A verdade é que a presença musical do compositor já rareava desde anos antes. Data de 1996 seu último trabalho com canções inéditas e interpretações de outros artistas. Três anos depois, lançou um álbum com releituras de composições de sua lavra. Em 2002, ele, Amelinha e Ednardo se juntaram no CD “Pessoal do Ceará”, mais uma vez cozinhando velhos hits. Nos últimos anos de vida pública, Belchior andava mais interessado na pintura.

Em 2009, uma reportagem do Fantástico materializou nacionalmente o sumiço de Belchior. Ele havia cantado com Tom Zé, em Brasília, meses antes, algumas pessoas afirmavam tê-lo visto aqui e ali e isso era tudo. As respostas dadas na entrevista eram vagas. O compositor estava no Uruguai, soava estranho, desconfortável, num cenário noturno.

O episódio da reportagem exibida pelo Fantástico atestou que uma mitologia se formava: mesmo encontrado, entrevistado, filmado, para a maioria, Belchior seguia sumido, exilado, desaparecido. 

Na mesma época, um pouco antes ou algumas semanas depois, chegou à equipe de cultura do Diário do Nordeste um rumor de que o compositor estaria de volta ao Ceará. De concreto, nada. Mas alguém havia dito que Belchior, o recluso e exilado compositor cearense, estava em Paracuru. Discutiram-se os riscos da empreitada e lá se foi um repórter pegar a estrada, andar pela cidade, percorrer a praia, apenas para voltar sem a confirmação do avistamento. Vivo, Belchior brincava de Elvis.

 

Como um disco voador, Belchior era visto, juravam as testemunhas, mas sempre escapava de registros fiáveis, em fotografia ou vídeo. Curiosamente, a certeza de sua localização se deu apenas quando o compositor deixou de se movimentar América afora. Era 30 abril de 2017 e ele estava morto, em Santa Cruz do Sul (RS). 

Sua ausência o fez uma presença imensa no imaginário brasileiro. A comoção à época de sua morte comprovou quão grande ele era para uma geração que nunca o viu de perto. Claro, não se pode negar a força da poesia de Belchior, em especial sua angustiada lírica dos primeiros anos. Belchior, que "se desesperava", na letra de "Alucinação" (1976), parecia se bater diante de um tempo confuso. É preciso mais para se identificar com ele?

Um desejo universal

O sumiço não é pouco importante na equação do fascínio em torno do compositor. Ele foi tomado como uma espécie de herói romântico, radicalmente lúcido em seu disparate. Afinal, o desejo de se apartar do mundo é universal. Uma hora ou outra, se insinua para todos.

Belchior fez em vida o que outros sonharam em canções. Raul Seixas pediu “pare o mundo, que eu quero descer”, em “Eu também vou reclamar” (1976). Roberto Carlos, uma década antes, havia cantado “Quero que você/ Me aqueça nesse inverno/ E que tudo mais/ Vá pro inferno”. 

Caetano Veloso, que viveu o exílio forçado nos tempos da Ditadura Militar, incluiu na música “Você não entende nada” (1988) os versos “eu quero ir-me embora,/eu quero é dar o fora./ E quero que você venha comigo”. O sentimento é partilhado por outro baiano que viveu as agruras do desterro:  Gilberto Gil. “Vamos fugir/ Pra outro lugar, baby./ Vamos fugir./ Pra onde quer que você vá/ Que você me carregue”, cantou em seu disco de 1984. 

A morte de Belchior, sem dúvida alguma, tem um papel importantíssimo no mito da sua desaparição. Com ela, não se pode mais esperar que, viva voz, o cantor explique seus motivos. Ademais, tornou definitivo o que, sabe-se lá, talvez não o fosse.

Nos anos 1970, John Lennon passou cinco anos cuidando do filho Sean, mas voltou à ativa a tempo de gravar "Mind Games" (1980) antes de ser assassinado. Patti Smith também preferiu curtir a vida em família e ficou longe da música por quase toda década de 1980, voltou em 1988 e está por aí. E há ainda caso de Gregg Alexander, cantor americano que fez sucesso à frente do New Radicals. A banda explodiu com seu álbum de estreia e, depois disso, seu líder encerrou suas atividades e preferiu sumir do mapa. 

Não faltam exemplos de autoexílio no cinema, na pintura. Belchior, que gostava tanto de literatura e povoava suas canções de referências aos livros, deve ter gostado de saber, se é que um dia pensou sobre isso, que os escritores são maioria a tomar o mesmo caminho. O escritor catalão Enrique Vila-Matas fez um inventário daqueles que renunciaram ao ofício que lhes definiu para o mundo.

A questão é maior que a resposta

Em 2016, um bloco de carnaval de Fortaleza homenageou o cantor e, de forma irreverente, pôs em xeque a discussão em torno das razões de o ídolo do Pessoal do Ceará ter se evadido. O lema de Os Belchior era “Pelo direito de desaparecer”.

Nas paredes da cidade, o sumido dava às caras, nos graffitis de Thyagão, artista visual e chargista do Diário do Nordeste. No Instagram, a hashtag #achoquevibelchior compila os avistamentos de um despreocupado Belchior, passeando, de violão em punho. A brincadeira tira o peso de uma questão que, talvez, se leve a sério demais. 

À geração LinkedIn, de workaholics sorridentes, do burnout sustentado à tarja preta, talvez seja demasiado estranho mesmo que um sujeito de 60 anos e mais quatro décadas de carreira queira parar de produzir e de se preocupar com a vida prática, para ver o tempo passar e bater perna pelo mundo. Nesses casos, é difícil dizer se a resposta ao mistério é desconhecida ou se somos nós que não temos condições de conhecê-la.

A verdade é que pouca importância têm e terão as teorias acerca de seu sumiço. O exílio de Belchior é como a morte de Elvis: nenhuma resposta será suficiente. Nem sequer a verdade. Desde 1977, apesar de sepultado em Graceland, Elvis continua aparecendo para quem não aceita que alguém como ele possa um dia morrer.

Belchior, por sua vez, seguirá habitando canções e o mistério de sua renúncia à vida que levava. "Viver é melhor que sonhar", escreveu ele em uma de suas canções que tantos admiram. São versos a que muitos se agarram, ainda que sigam perplexos quando alguém, talvez o seu próprio autor, os coloque em prática.