Dia destes, Ana Maria Braga se viu objeto de um debate entre sociólogos, interessados em aferir suas referências bibliográficas. Para encerrar uma das edições do matutino "Mais Você", a apresentadora escolheu um clássico daquela disciplina - o alemão Max Weber.
“Às vezes, a nossa vida é colocada de cabeça para baixo para que a gente possa aprender a viver de cabeça para cima... Max Weber", recitou Ana Maria, direcionando à câmera um olhar investido de sabedoria e um meio sorriso blazé. O cômico da situação não era que uma apresentadora popular citasse um pensador robusto e de leitura muitas vezes árdua, mas o sabor de autoajuda da frase.
A frase atribuída a Weber é encontrada facilmente numa busca no Google. Já vem no formato .JPG, prontinha para ser enviada para seus contatos no WhatsApp ou ser postada nos stories do Instagram. No entanto, ela não se encontra em "A ética protestante e o espírito do capitalismo" ou "A Teoria da Organização Social e Econômica", nem em qualquer outro livro da bibliografia weberiana. Ela apareceu num filme americano, "Ponto de decisão" (2009), comédia romântica inspiracional com elenco B.
Pode-se ver aí um deslize da produção, mas talvez o caso seja outro. Como Ana Maria, já subverteram autorias. Tudo por uma boa causa. E, neste panteão inventivo, ela está bem acompanhada.
Cavando mais fundo na verdade
Werner Herzog é um dos grandes do cinema. E o diretor alemão é conhecido por combinar, misturar e fazer confundir ficção e realidade. Em uma entrevista à revista Discover, ele defendeu seu ponto: não seria errado modificar os fatos, desde que fosse para “cavar em uma verdade muito mais profunda”. A ideia era fundamentada na literatura de André Gide. “O escritor francês disse certa vez: ‘Modifico os fatos a tal ponto que eles se parecem mais com a verdade do que a própria realidade’. É uma declaração muito profunda para mim”, contou o diretor aos repórteres.
Acontece que os entrevistadores não conseguiram localizar a frase citada por Herzog nos livros de Gide e, então, recorreram ao entrevistado para sanar a dúvida. Onde encontrá-la? “Eu posso tê-la inventado”, respondeu.
Martin Scorsese, outro cineasta do primeiro escalão, também é partidário da ideia de Herzog (ou, talvez, de Gide). "Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese", disponível na Netflix, é um filme sobre a turnê americana de 1975 de Bob Dylan. O documentário inclui depoimentos como o de Sharon Stone, em que a atriz conta uma história que, de fato, não aconteceu. Atores se fazem passar por pessoas envolvidas na excursão e o próprio Dylan cita gente dessa trupe fictícia em suas falas para a câmera de Scorsese.
A mentirinha do bem da ficção
Em um ponto, se pode confiar plenamente em Werner Herzog: é na literatura onde mais encontramos gente que coloca palavras na pena dos outros. O catalão Enrique Vila-Matas é uma metralhadora de citações em seus livros, muitos dos quais dificílimos de se distinguir de um romance e um ensaio. Parte delas é retocada, descontextualizada, inventada.
O procedimento mais radical operado por Vila-Matas, contudo, se deu quando ele atuava na imprensa. Em 1964, a revista Fotogramas chamou em sua capa para uma entrevista surpreendente com Marlon Brando. "Um momento de sinceridade", dizia o título nas páginas internas. A entrevista, no entanto, era uma criação de Vila-Matas. De fato, uma entrevista havia sido marcada. Como espanhol não dominava o inglês, recorreu ao talento para a ficção e fez o astro de Hollywood falar o que ele mesmo pensava.
O procedimento do jovem Vila-Matas não é um caso único no cânone do jornalismo literário, capítulo fake news. Quando chegou aos cinemas, "Os Embalos de Sábado à Noite" (1978) foi vendido como uma ficção, inspirada na reportagem "Tribal Rites of the New Saturday Night", do jornalista inglês Nik Cohn. Publicado dois anos antes, na revista New York magazine, o texto se dizia um mergulho factual na cena disco da cidade. Vinte anos depois, o autor confessou que, de fato, o artigo era uma peça de ficção, pois não havia chegado perto o suficiente dos clubes disco e alguns dos personagens eram inspirados em figuras reais, mas das ruas de Edimburgo.
Trapalhadas, jornalismo capenga, reflexão sobre os limites da ficção, experimentalismo literário e cinematográfico. O terreno onde andou Ana Maria Braga já seria suficientemente impreciso e complexo, até uns anos atrás, mas em 2021 é elevado à condição de um engodo ético e epistemológico, quando os fatos são canibalizados por fraudes sob as vestes de notícias; e o pensar é visto como uma atividade exaustiva e pouco produtiva. O discurso tem que ser simplório, raquítico de inteligência e, se preciso, até mesmo falso, desde que apreendido facilmente.
De tão vasta, a discussão pode levar qualquer um a se perder, trocando nomes, confundindo identidades. O caminho de volta ao lugar onde cara e crachá conferem fica mais e mais difícil. Restará a dúvida sobre aquele que regressa: é o mesmo que partiu?
Melhor encerrar aqui. E não há maneira mais apropriada de fazer isso do que recorrendo a uma citação, verdadeira à moda de Gide - ou de Herzog, não tenho certeza.
“Adoro os textos deste menino, o Dellano Rios. Leiam, leiam-sempre”. Ana Maria Braga.