Quem não se entregou ao negacionismo tem diante de si a agonia de uma sucessão ininterrupta de desgraças Brasil adentro. Não é de impressionar que muita gente procure, para esses dias sombrios, algum tipo de escapismo. O mais recente alívio cômico de nossa tragédia é o viral da gincana da FGV, proporcionado por uma certa Gabi de mil contatos.
O humorista Fábio Porchat, as apresentadoras Xuxa e Ana Maria Braga, o deputado e ex-ator pornô Alexandre Frota, seu colega de Câmara federal Rodrigo Maia, e o ex-ministro e ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro, são alguns nomes conhecidos que, em vídeo, declaram apoio a uma turma de novatos da instituição. Quem os reuniu, contudo, deu um tiro n’água, pois o sucesso na internet não significou vitória na gincana.
namoral q DELÍCIA deve ser nascer rico & com network pronto
— Nauhana (@anauweb) March 25, 2021
mas assim vindo da fgv nem deveria ser um espanto tão grande
admito q perdi TUDOH qnd o Moro e o Jay de modern family apareceram pic.twitter.com/XJdnChf391
De fato, anualmente, o Diretório Acadêmico Getúlio Vargas (DAGV) realiza uma prova entre as turmas de calouros. Vence quem conseguir mais vídeos de apoio entre as “celebridades”, assim, com aspas. "Celebridades", nesse caso, são alunos veteranos que fazem parte da torcida da FGV-SP. O ruído na mensagem deu origem à confusão e ao meme.
E o que há de cômico nele? Bem, a começar, o próprio contexto da confusão e de como as consequências do engano fizeram tudo se agigantar. Há também a performance da aluna da FGV, com um invejável acesso fácil a famosos, de diversas áreas. Por fim, o deslocamento de certos personagens, que se esforçam para se enturmar e parecer mais simpáticos do que o são de verdade.
A farsa
Mas, para fazer como o Pedro Bial de uns BBBs atrás, aqui cabe uma citação de Shakespeare: "algo sinistro vem aí". Na verdade, já chegou e, embora tenha algo de farsesco, sua graça encobre uma realidade nada risível.
O meme da gincana da FGV seria uma excelente cápsula do tempo, a dar testemunho ao futuro do buraco que nos metemos.
Afinal, não deveríamos naturalizar como a classe política se mostra não apenas confortável no universo das celebridades, mas ansiosa por se confundir cada vez mais com elas.
Esqueçam Alexandre Frota: ele é a exceção, que não retrata bem o panorama. Sergio Moro e Rodrigo Maia sim, são bons exemplos do animal político que, cada vez mais, se constitui como um subgênero dos influenciadores digitais. E, como tais, não perdem uma boa oportunidade de se fazerem presentes nas vastas terras das redes sociais.
Em um livro chamado “Amusing Ourselves to Death” (Divertindo-nos até a morte, 1985), Neil Postman alertava que “nossos padres e presidentes, nossos cirurgiões e advogados, nossos educadores e jornalistas precisam se preocupar cada vez mais em satisfazer as exigências de serem bons apresentadores do que as exigências de seus próprios ofícios”. (O livro é inédito no Brasil e peguei a referência em outro, ainda importante sobre o momento que vivemos: “A morte da verdade - Notas sobre a mentira na era Trump”, de Michiko Kakutani).
Instagram e Twitter são campos de batalha disputados, e a gramática da política é cada vez mais a do meme: contundente, mas raso e, por isso mesmo, não tão sério como, nesse caso, deveria ser.
A régua é menos a comunicação do que uma colheita de reações. O debate público é menos importante do que os compartilhamentos infinitos, disseminando uma figura simpática que nem sempre condiz com a realidade dos atos políticos.
O avatar e a figura política
Maia, nas redes sociais, parece um rebelde bem articulado. É espirituoso, tem boas sacadas e ataca o Governo Federal a cada vacilo de Bolsonaro e dos seus. É um personagem que não parece ter ligação com aquele, de carne, osso e mandato. Na presidência da Câmara, Maia foi um bom aliado do Governo, ajudando a aprovar leis e, oportunamente, segurando os pedidos de impeachment que ameaçam o presidente que hoje ele tanto critica.
Após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter declarado que sua conduta como juiz foi parcial, Moro garantiu sua fatia no meme da vez. A cada movimento do tipo, de colecionar curtidas, gente poderosa se esquiva de suas controvérsias - e a política é o reino das terras cinzentas da controvérsia. As vestes de influencer lhes caem bem, os tornam mais simpáticos.
Não faltam exemplos de como os memes não são exatamente uma bússola segura na política. Tiririca havia assegurado que “pior do que está não fica”, e o que se vê é que pior do que está não para de ficar.
Contudo, o exemplo mais importante nem é esse, mas o do que ganhamos com esse tipo político cada vez mais numeroso: o político influenciador digital. Exímios caçadores de cliques e, com eles, de votos. Mas não é exatamente este seu ofício, não é?
A política, no Brasil, precisa de cada vez mais sobriedade e seriedade. Para que seja possível se interpretar com precisão cada gesto e despojar seus personagens de máscaras que simplifiquem e falseiem seus contornos. Seria melhor que se ocupassem de seus ofícios, decerto não lhes faltará com que se ocupar. À política não cabe o papel de alívio cômico, mas de alívio dos males que nos afligem como sociedade.