Círio Brasil: o homem que nasceu no circo para virar mestre

Mirtes e Pimenta fugiram com o circo, por isso o destino do filho Círio foi nascer numa barraca de lona. O menino aprendeu a ler o picadeiro, virou mestre da cultura e vê quatro gerações de sua família abraçar a arte circense

Os pais, Mirtes e Pimenta, decidiram fugir com o circo. Só por isso calhou de Círio Brasil nascer em uma barraca, rodeado de artistas em Santarém, no norte do Brasil. Mas o cheiro da lona é algo que gruda na pele e não sai mais. Nele, impregnou a ponto de levar o menino que cresceu brincando de palhaço a aprender a ler o picadeiro e virar mestre reconhecido.

Círio, que passou a maior parte da vida no Ceará, divide o título com o pai e o tio Brandão nesta família de mestres, empenhada em defender a cultura circense e lutar pelos direitos dos artistas mambembes há décadas.

Mirtes foi a primeira da família a fugir com o circo. Aos 13 anos, deixou a fome nos roçados de Juazeiro do Norte, onde trabalhava na agricultura com os pais e os cinco irmãos, e seguiu para buscar outro destino em Fortaleza. Chegou na Capital com toda a família, mas, como ninguém tinha estudo ou profissão, todos findaram na rua.

Nas margens da BR-116, ela se pendurava, balançando o corpinho magro contra o vento. A brincadeira para passar o tempo virou ascensão. Seu Zé Gomes, um circense, viu na menina pendurada algum talento para o picadeiro e a convidou para o circo dele.

De tanto observar o trapezista voar, Mirtes aprendeu o número e correu para se aventurar no picadeiro. Quando começou a ganhar dinheiro, chamou o restante da família. “Eles viram no circo uma coisa de mudança de vida mesmo. Nunca mais passaram fome”, rememora o filho Círio Brasil. 

Foi no circo que Mirtes conheceu José de Abreu Brasil, o palhaço Pimenta, com quem teria seus filhos. Quando ele viu uma lona pela primeira vez, não sabia nem o que era circo. Trabalhava no que aparecesse: pegando algodão, plantando feijão, usando pá e enxada, se empenhando na vacaria. Até que, um dia, atravessando Fortaleza para vender leite, viu uma lona armada e foi ver o que era.

– Ei, o que é isso aí? – perguntou, sem cerimônia, a um rapaz que caminhava no entorno.
– É um circo.
– E o que é um circo?
– Ah, no circo tem malabarista, trapezista, palhaço. É um espetáculo.

Pimenta se despediu com tanta curiosidade que, à noite, voltou para assistir o espetáculo do Circo-teatro Uiara. Gostou tanto que viu todos os espetáculos e decidiu ir embora com aquele circo. Começou fazendo serviços gerais, mas ensaiou tanto os números que tornou-se palhaço. Hoje, também é mestre.

“Mirtes me ensinava tudo, de cantar paródia a levar comédia. A gente chegou a levar teatro num cirquinho nosso”, recorda Pimenta. E é justamente aí que começa a história do homem cuja maior tarefa de vida é seguir o legado da mãe.

Depois de boa parte da infância no circo, Círio viu os tempos mudarem. Os pais se separaram, o dinheiro do espetáculo rareou, e Mirtes decidiu trocar as barracas de lona pela casa de tijolo. Passou a lavar roupas para fora e fez de tudo para que os filhos seguissem estudando, mas a tristeza da nova vida não lhe abandonava. Sonhava em montar outra vez seu próprio circo e, com a ajuda de um amigo ambulante, conseguiu montar um muito pequeno.

 
O circo estreou no dia 3 de julho de 1990, em Aquiraz, com os filhos de Mirtes brilhando no picadeiro. “A gente começou a ter outra vida. O circo não saia do sangue da gente. Em casa, a gente já fazia um cirquinho no quintal e se pintava de palhaço”, conta Círio.

Mas no dia 3 de julho de 2002, tudo ruiu. Eram seis da tarde, quando Mirtes anunciou uma dor que nunca sentira. Faleceu do coração, quase levando consigo o sentido de manter o circo. Círio não deixou o legado desaparecer. “Ela deu a vida pelo circo. Ela morre, e a gente toca fogo e acaba tudo? De que foi que adiantou tanto sofrimento?”, argumentou.

Então ele esperou o enterro, se permitiu um dia de luto e seguiu com o circo que rebatizou de Mirtes. Durante anos, honrou o legado da mãe no nome do circo que mantém até hoje com os sete filhos que pôs no mundo. Mas quem é circense sabe que a alma do negócio é se reinventar, e o nome mudou para Seven Brothers. A família cresceu, e hoje o espetáculo conta com a quarta geração de artistas com os netos de Círio no picadeiro.

A gente tem o privilégio grande de ser uma família de mestres. Os três mestres da cultura do circo do Ceará sou eu, meu pai e meu tio Brandão. É um título que veio para contemplar uma luta que a gente tem pelo circo a vida toda. Espero que, no futuro, meus filhos também possam ser mestres.
Círio Brasil
Mestre da cultura e circense

O que nunca mudou é que continuam sendo de Círio os olhos do circo familiar. No picadeiro, cabe ao homem de cabelos encaracolados a tarefa de sentir a plateia, fazer a locução do espetáculo e mestrar cena para os filhos Wanderson e Wenderson, que dão vida aos palhaços Baratinha e Besourinho. 

Também é ele que acompanha as criações artísticas das filhas Samara, Mara, Nayara e Tamara, que assumem números de magia, contorção, bailado e lira no picadeiro. Círio não descansa no posto de observação. Passa o tempo checando o espetáculo, o público e cada detalhe da estrutura de ferros e fios sob as lonas. “O circo é a nossa casa. Precisamos cuidar muito bem dela”, ele diz, espremendo os olhos miúdos de atenção.