Hermínia e suas saudades

Na poesia de Hermínia Lima, o tempo é um dos temas mais atuantes

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“Livro das ausências”, de Hermínia Lima, traz cem poemas de saudades que parecem cem anos de amores. São ausências que cantam, gritam, pulsam, doem e lamentam, conforme se nomeiam as partes do livro. Tudo isso salgando de lágrimas a “saudade que rasga o tecido da tarde”. É uma poesia que encabresta o tempo e ruge nas portas da distância para dar entrada a cada sonho. Tempo e vento vão sempre gerundiando das redes às rotas, “volutas no vento vivo e violento”.

Simbólica, sua poesia transforma a rede numa concha, ambiente de celebração dos sonhos. Entre cadeiras e calçadas, saberes e sabores sinestesiam com os cheiros de doce e frutos que a menina vivencia na mulher em que se tornou. Sua revisita à Missão Velha da infância bota canto na cachoeira e fantasmas nos seus medos. No mais, a lua é carpideira e “a saudade chega tão lâmina / que fere a pele da tarde”. Nesse cenário surgem os cinco irmãos, todos meninos, que a irmã única e primogênita comanda, ditando rumos. Os cheiros da querida avó e os bombons que o avô não esquece são cordas que emitem a música do país do coração.

Na poesia de Hermínia Lima, o tempo é um dos temas mais atuantes. É um tempo que vai da espera ao desconforto da perda. Mas, forte no seu trajeto e guerreira nas emoções, ela não se deixa vencer pelas artimanhas do Cronos. Para isso, apodera-se do comando das vertigens e as transforma em memória do que foi bom. Daí que seu “Poema luso” se torna antológico por enclausurar no verso, aqueles momentos que não conseguem se dissipar. Esse poema, de tão belo, pode ser considerado uma das maiores realizações poéticas da autora. Nesse caso, diferente de algumas outras situações do livro, ele não é uma fala emudecida. Ele está vivo e lateja incólume na memória.

Transitar por estes poemas hermínicos é escalar o dorso de uma saudade que não é só dela, mas de quem também vivenciou um ou uns grandes amores. De uma sensibilidade pulsante, as estiagens, quando lhe atacam a alma, são saudades que secam “os suculentos sumos” do corpo. São saudades que ressecam a pele dos seus dias. É tanto que essa saudade “é presença laminada / que invade a sala, / os quartos, / passa pela cozinha / e cria raízes no quintal”. Nesse percurso pelo seu corpo poético, o leitor é tragado inesperadamente pelo aluvião de “Funeral ou poema para o crepúsculo”, consagrador poema.

Hermínia quando parte para temperar seus poemas de condimentos eróticos é insuperável na coragem de se revelar. “Param e pousam lentos, os meus pés, / quase plumas, / sobre o teu peito, / antes que a tua língua colha os meus anseios”. Essa mesma temática se estende ainda mais voluptuosa quando ela mitifica a relação amorosa em “Pelesigno”. Como o “Bolero”, de Ravel, ele simboliza a relação amorosa que não pode nem deve ser interrompia no seu crescer, até acontecer o paroxismo. Esse Nirvana só é alcançado quando os pelos se eriçam, as fendas se ofertam, quando “a boca busca gulosa a benção do beijo”, quando palavras “profanas e sagradas antecipam a invasão de dardos, cetros feito facas”.

Esse erotismo é tão latente que até a visão da lua nua no céu sugere também sua nudez nos braços do amado. É então que encarnando as fases lunares ela se torna minguante quando fica só e se torna crescente quando é enlaçada pelo parceiro. Daí ela revelar: “Sou cheia / e transbordo / lassa, / quando me abraças, / depois de um orgasmo / num delicioso / cansaço”. Antes porém desse desfecho, no entanto, motivações se fazem necessárias como uma tarde quente, o fartum que evolue do verdor da mata do cerrado, como o odor da novilha no cio, quando do roçado chega para o repouso no curral da fazenda.

Como é bela essa “Canção dos lábios”, quando o sol se perde da tarde e ela arde que umedece os panos e “os lábios sabem / os lençóis se lambem”. Toda essa volúpia ardente se choca com o rugir do tempo acelerado e o verbo que se produz é um imperativo “vem”, já que “o tempo urge”. É preciso aproveitar enquanto os desejos ainda transpiram insanidades. A essa altura, a preocupação com o tempo passa a margear o bonde da vida que teima em não ter freio para segurar a lascívia dessa culminância. Daí rotas novas necessitam ser construídas na selva dos dias.

Daí em diante o tempo acelera e o ciclo vital se estampa na sua poética. Por isso que o poema “Madrugada” pontifica cortante e pungente canto em busca das palavras suficientes para mitigar a solitária madrugada. “É preciso calar o fogo no fundo d´água”. Afinal, “a espera / quando carrega o cansaço das procelas / tinge de preto / a aquarela”. Nesse percurso nostálgico ela passa por uma tocante elegia ao poeta Pedro Lira e conclui com “Tempo de espera”, seu poema culminante. “Dizem que quem planta amora / não colhe amoras. / Há demora / para a colheita perfeita... estou a esperar amoras, / nessa saudade morna, / que cansa e se agiganta, / nessa espera por frutos / que virão um dia, / ainda que seja na eternidade”. É tudo.