O psiquiatra André Gadelha é o único profissional no Ceará que hoje realiza eletroconvulsoterapia. O atendimento é feito em um clínica particular em Fortaleza. No dia a dia, André sabe, desconstruir preconceitos é um imperativo já que, devido o passado sombrio, o método ainda é mal visto. O psiquiatra ressalta “a ECT não é uma prática manicomial”, e reforça que jamais apoiaria condutas tão nocivas à sociedade.
A eletroconvulsoterapia, diz ele, não é “uma modalidade salvadora”, e esclarece que não é possível abrir mão de outras terapias no processo. Em entrevista ao Sistema Verdes Mares, André explica o procedimento e as finalidades, além de reiterar o foco na recuperação de pacientes em condições específicas.
Qual é o início da convulsoterapia?
A eletroconvulsoterapia começou na primeira metade do século XX, nos anos 50, foi uma das primeiras modalidades de tratamento biológico da psquiatria, em uma época em que não tínhamos tratamento nenhum. Tínhamos outras modalidades como choque insulínico. Na época que não se tinha remédio nenhum para tratar pacientes. Era um técnica bem diferente do que se faz hoje em dia, em comum com a ECT do século XX pra hoje, tem a eletricidade, usada de um jeito diferente e a necessidade de se gerar uma convulsão para você ter um resultado terapêutico no paciente. Essas são as semelhanças. Mas a maneira como é feita, os tipos de pacientes, as complicações, o ambiente terapêutico onde se é feito, é completamente diferente.
No Brasil, a gente segue algumas normas compartilhadas com sociedades internacionais e tem uma resolução do Conselho Federal de Medicina que normatiza o ECT como se faz hoje em dia. Esse ECT que vemos hoje, começa mais ou menos nos Estados Unidos nos anos 1980 e no Brasil no final dos anos 1990. Que é esse formato mais moderno, com anestesia, com ambiente hospitalar, de cuidado com o paciente, com tecnologia.
Qual a indicação para a adoção desse tratamento?
Hoje a nossa principal indicação são os transtornos afetivos: depressão e transtorno bipolar. Pacientes deprimidos que não respondem à mediação e pacientes com sintomas muito graves que não daria para esperar o tempo normal de resposta das medicações. Depressão muito resistente a medicação ou muito grave e as vezes os dois quadros associados.
Esses pacientes vêm referenciados de onde?
São pacientes que já fazem tratamento e vem referenciados por outros colegas. Muitos, pela seleção que o custo do tratamento acaba fazendo, são de alto padrão.
Os pacientes estão conscientes e decidem fazer?
Na enorme maioria das vezes é o paciente que tá decidido em fazer. Sã raros os pacientes que vêm pra cá e os responsáveis decidem. Eu nunca recebi um paciente que manifestasse o desejo de não fazer. até porque eles têm que assinar um termo de consentimento. Chega, às vezes, um paciente que não tem condições de dar o consentimento porque está catatônico (extremo de gravidade ou de depressão ou de esquizofrenia, que tem uma parada comportamental, ele não fala, não come, não se movimenta). Quase todo mundo que chega aqui já tentou várias terapias.
No caso da catatonia deveria ser a primeira escolha. Mas a maioria dos casos chegam depois de terem tentado várias medicações. O tempo para chegar tem muito mais a ver com o estigma do tratamento, com o custo, do que com indicação. Teve paciente que chegou aqui depois de estar seis meses catatônico, de internação hospitalar, com sonda, sem falar, sem andar, com perda de peso.
Tem uma média ideal de sessões?
Tem uma média, mas ao mesmo tempo é muito individualizado. São oito ou 10 sessões. Mas varia muito. Tem paciente que responde muito bem na quarta sessão e não tem sentido fazer oito. Então eu ofereço essa possibilidade. Falo para os pacientes. E o que respondem na quarta sessão podemos encerrar o tratamento. Alguns querem estender um pouco por sentirem-se inseguros. Vamos tentando convencer a espaçar a sessão.
De quanto em quanto tempo?
Duas vezes por semana, se os pacientes estiver em crise. Alguns paciente são indicados fazerem manutenção com eletroconvulsoterapia. Manutenção é a fase do tratamento que já cessou o quando sintomático, você está usando uma medicação ou intervenção tipo ECT para evitar a volta dos sintomas. Esse pacientes fazem uma a cada semana, depois uma cada 15 dias e depois uma por mês. Uma espécie de desmame.
Tem restrição de duração das sessões?
Tem pacientes que tem alguns diagnóstico, que por característica daquele quadro, daquela doença, se não fizer algum tratamento de manutenção, vai entrar em crise. Eles são candidatos a fazerem por tempo indeterminado. Mas o que vamos tentando fazer, é que quanto mais tempo o paciente está estável, vamos tentando espaçar a sessão. Até chegar a hora que a gente consegue suspender. O que ficou mais tempo com a gente em manutenção ficou um ano.
Essa clínica (particular) é o único local que realiza eletroconvulsoterapia no Ceará?
Eu desconheço outro local. A gente recebe pacientes do Crato, e até de outros estados como Maranhão e Rio Grande do Norte.
E a demanda? No ano?
A demanda é bem aquém do que se imagina. Eu consigo te falar por mês, que chega a ser de 4 pacientes por mês.
O que faz com que essa técnica não seja ofertada com abundância na rede privada e sequer esteja disponível pelo SUS no Ceará?
Na rede privada é o estigma que os próprios psiquiatras que têm conhecimento, têm receio de indicar para seus pacientes. Porque os pacientes vão ter medo. Muito temem perder os pacientes. Tem muito estigma envolvido. Muitos pacientes chegam com muito medo e receio do que vai acontecer. Isso, pra mim, é uma das coisas que pesa muito. No SUS, tem a ver com uma legislação mais restritiva advinda da Reforma Psiquiátrica.
A eletroconvulsoterapia entrou nesse saldo das práticas manicomiais. No Sudeste a realidade é outra. Em São Paulo tem vários serviços grandes de eletroconvulsoterapia. Tem uma série de hospitais públicos e privados com esse serviço. O estigma é a grande questão envolvida na falta de interesse de realizar, como de indicar a eletroconvulsoterapia.
Isso tem relação com o passado?
É um tratamento que foi muito mal empregado durante uma época sombria da história da psiquiatria, mas que foi transformado. O tratamento em si tá muito diferente do que se fazia naquela época. O estigma surge em manicômio com centenas de pessoas internadas, vivendo situação mais bizarras possíveis e até como forma de castigar alguns comportamentos e não como forma de aliviar sofrimentos.
Na sua opinião, o SUS tem demanda de centro de realização de eletroconvulsoterapia?
Eu considero que sim. É uma maneira de fazer internações mais breves e você pegar pacientes com quadros muito graves e resistentes à medicação e quem tem as vezes indicação de internações e vão estender essas indicações porque não tem uma modalidade terapêutica que possa contemplá-lo. Algumas situações específicas ficam descobertas e o paciente precisa ingressar na Justiça para ter acesso à terapia.
Quais são as situações de risco?
Geralmente qualquer situação clínica, paciente que tenha tido AVC isquêmico ou hemorrágico recente, alguma válvula implantada no sistema nervoso central, infarto recente, arritmia. Esse paciente não está indicado. Além de pacientes hipertensos com pressão descompensada.
Quais os efeitos colaterais?
A memória é o nosso principal efeito colateral. Não é o único mas é o principal. Causa desconforto. Na sessão os pacientes acordam com dor muscular, que se assemelha a dores de quem malhou muito ou quem deixou a cabeça pendente em uma viagem. Há uma amnésia da sessão desejada. Essa amnésia é fruto da sedação e da convulsão em si. Mas depois no acumulo das sessões há um prejuízo de memória de curto prazo.
Não é você perder as memórias do passado. Não é isso que acontece. É dificuldade de aquisição de memórias de curto prazo no período do tratamento. Memória de curto prazo é essa que eu vejo uma coisa e gravo aqui para usar daqui a pouco. São alterações reversíveis. Na literatura médica, coloca essa reversão em um período de dois meses.
Você pode descrever o procedimento?
Antes de fazer o paciente precisa estar de jejum de sólidos e líquidos por 10 horas. Na clínica, a gente monitora o ritmo cardíaco com o eletrocardiograma, a pressão arterial e a saturação de oxigênio no sangue. Eles devem trazer exames pré-tratamentos. No começamos oferecendo oxigênio para manter o nível de oxigênio o mais alto possível. Em seguida, é feita a sedação. O paciente fica profundamente sedado (dormindo). Feito um relaxante muscular (bloqueio muscular). Um agente que bloqueia o sinal entre o nervo e o músculo durante a aplicação da ECT porque o tratamento é provocado por convulsão. A carga elétrica é padronizada internacionalmente. Mas varia conforme o gênero do paciente, idade e medicação em uso.
A corrente chega via eletrodos que são colocados na cabeça do paciente e o tempo de carga elétrica, o maior é de 8 segundo e o menor de 5 segundos. O paciente deve ter uma convulsão que não seja curta demais. Ela tem que durar no mínimo 20 segundos e no máximo 1 minuto. Visualmente o paciente não se mexe, como em uma crise epilética normal. O relaxante muscular faz com que o corpo fique parado. A musculatura esquelética fica parada e o relaxante não chega somente no pé do paciente. O pé mexe durante o procedimento. É possível perceber pelo pé e pelo monitor que vemos o efeito da convulsão sobre os ritmo cardíaco. É a forma de saber se o paciente está convulsionando. Após isso, espera o paciente acordar. O que leva cerca de 30 minutos.
Qual a finalidade do tratamento e o que ele garante?
O tratamento tem cerca de 60 anos de uso no mundo, mas não se tem a certeza sobre o exato mecanismo que faz ela funcionar em um sujeito e no outro não. Sabemos que há uma liberação massiva de neurotransmissores (substâncias responsáveis pela comunicação entre as células nervosas), as catecolaminas (hormônios que atuam como reguladores do metabolismo e como transmissores), principalmente, como a noradrenalina, cerotonina, adrenalina, dopamina, durante o procedimento, uma enxurrada de células no cérebro. Mas isso não é o que gera o efeito antidepressivo. Se fosse, o paciente já acordava na primeira sessão muito bem.
Essa repetição da sessões é que me parece ter o efeito antidepressivo. Algumas substâncias que são reguladoras do funcionamento dos neurônios começam a funcionar, que antes não funcionavam. Então, os neurônios que estavam se conectando muito menos, voltam a se conectar novamente. Algumas áreas hipo funcionantes voltam a funcionar. Gradualmente a cada sessão. Os neurônios voltam a se reconectar. O efeito é muito mais em neuro plasticidade (processo contínuo de reorganização dos circuitos neurais) do que simplesmente em liberação de neurotransmissores.
O cérebro tem dois tipos principais de neurotransmissão: elétrica e química. A gente fica o tempo inteiro fazendo basicamente as duas coisas. A química o neurônio se comunica com outro liberando alguns neurotransmissores (serotonina, adrenalina).
No paciente deprimido a neucircuitaria que controla o humor e a vontade ela sem sensibilidade dos neurotransmissores. Não existe carência de serotonina, por exemplo, mas na hora que chega do outro lado, ele (neurotransmissor) não passa a resposta. O receptor como tá hiper funcionante, ele tá desligado. Ele não passa a resposta pra frente. nesse processo de tratamento com a ETC é como se esses receptores fossem trocados. E como tratamento eles se reconectam. O que acontece muito na ECT, ao contrário do que o estigma apregoa, nós não matamos neurônios. Pelo contrário, fazemos esses neurônios voltar a funcionar.
Esse princípio de ação é semelhante ao que os medicamentos fazem em longo prazo?
Não. A grande maioria da medicação da psiquiatria em geral elas se findam em oferecer mais neurotransmissor, na fenda entre os neurônios, e no bloqueio de neurotransmissores. Basicamente eles agem ou aumentando a disponibilidade ou bloqueando. Então, os antidepressivos são inibidores da recapturação de serotonina. Nos antidepressivos você aumenta o tempo e a disponibilidade de serotonina. Nas medicações antipsicóticas, eu tenho o bloqueio de dopamina. Ações pra além dos receptores, de refazer ramificações, não tem medicação que trabalhe com essa via. Isso pode causar resistência com o passar do tempo. Nós temos basicamente um paradigma de ação para toda medicação disponível no mercado.
O que é possível falar em relação ao estigma desse tratamento?
Nessa discussão que foi mobilizada muito pela luta antimanicomial. A gente tem que tentar entender que a ECT não faz parte dessa equação. A gente não defende práticas manicomiais. O ECT não é uma prática manicomial e nem a prática manicomial está restrita ao manicômio. Você pode ter prática manicomial na tua casa.
A prática manicomial é não respeitar a subjetividade do sujeito, é fazer um tratamento que não leve em conta o bem estar do paciente, é tenta não integrar o paciente na sociedade, é apartar o paciente da sociedade.
E o ECT era muito mal usado numa época que a única prática disponível no Brasil era a prática manicomial. O ECT hoje em dia é uma modalidade de tratamento, com respaldo científico. E olhar esse dessa forma é um olhar negativo que só agrega estigma ao tratamento do paciente com doença mental ao invés de tentar proteger esse paciente desse estigma.
O que você destaca sobre a ECT?
O ECT não se pretende como uma modalidade salvadora. A gente não abre mão das outras modalidades de abordagem. Não quero com a ECT dizer que a terapia com o psicólogo, a terapia ocupacional, a terapias integrativas e comunitárias tem valor menos, pelo contrário, não dá pra abrir mão dessas terapias. O paciente que chega para a eletroconvulsoterapia é um paciente muito mais grave que a média dos pacientes que a gente encontra nas clínicas e é um paciente que requer muito mais atenção. Jamais eu vou achar que eu vou conseguir resolver sozinho o problema desse paciente. Além de muita arrogância, seria uma estupidez. É um paciente que vai precisar de terapia intensiva com certeza e abordagens sociais para recolocar esse paciente no convívio, para reconstruir as coisas que foram destruídas pela doença mental.