Professora denuncia tentativa de ter cabelo crespo ocultado em foto da CNH: ‘Faz parte da minha identidade'

Gilvaneide Santos percebeu a tentativa de ocultar o cabelo crespo e tentou refazer a foto; pesquisadora prepara documentação antes de embarcar para São Paulo onde vai estudar questões raciais

“Arrumei meu cabelo, ela ficou olhando para mim e eu achei estranho. Quando eu olhei a foto disse: ‘meu cabelo não está na foto’”. A lembrança de Gilvaneide, de 34 anos, é sobre o dia em que foi emitir a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), em Fortaleza, e teve o enquadramento da foto diferenciado de forma em que o cabelo crespo não aparece na identificação.

A avaliação e relato de denúncia foram abertos pela professora sobre o atendimento feito no Departamento Estadual de Trânsito (Detran), mas segundo ela, nenhuma resposta foi encaminhada sobre o caso que aconteceu no dia 9 de novembro deste ano.

Gilvaneide prepara documentação antes de viajar para São Paulo onde foi aprovada em doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A última etapa era ir ao Detran, bater uma foto e voltar para casa”, conta sobre o dia em que se frustrou depois de conseguir resolver diversas burocracias de forma rápida.

Na ocasião, mesmo mostrando o documento antigo, não teve o posicionamento da foto feito de forma adequada. “Fiquei feliz porque a mulher que ia bater a foto era negra e pensei que não teria problemas com meu cabelo”, comenta sobre o atendimento.

Eu não estou fazendo birra, eu quero que a foto tenha o mesmo enquadramento que meu amigo branco mostrou para mim
Gilvaneide Santos
Professora

A funcionária respondeu que a professora seria identificada pelo rosto, “mas meu cabelo faz parte da minha identidade”, como contesta Gilvaneide. “Fiquei sem atitude, porque como ia acusar uma mulher negra de ser racista? Fiquei paralisada”, lembra.

A empresa em questão, dentro de um shopping em Fortaleza, é credenciada ao Detran. O órgão, por meio de nota, informou que a foto está dentro dos parâmetos da Resolução 1515/2018 do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) com proporções em que a face do usuário deve ocupar entre 50% a 75% da largura da imagem.

O Detran também informou que o padrão é estabelecido para todas as fotos e não há margem para qualquer alteração individual.

"O Detran reforça, ainda, que repudia qualquer tipo de preconceito, assim como atende, por meio de servidores e colaboradores, a todos os seus usuários de forma respeitosa e correta, independente de gênero e raça", completou por nota.

“A partir do momento que eu assumi o meu cabelo crespo, as violências vieram à tona”

A volta para casa foi com tristeza e incômodo pela situação que não foi resolvida mesmo com contato feito à coordenação do ponto onde foi recebida.

“Quando cheguei em casa, vi o e-mail pedindo para avaliar o atendimento e eu relatei tudo que tinha acontecido", comenta. A professora também acionou a Ouvidoria Digital por meio do 155.

O caso também foi publicado nas redes sociais, plataformas em que Gilvaneide observa maior pluralidade, como forma de alertar outras pessoas sobre o assunto. “Dói muito me expor”, reflete. Mas a denúncia acontece como tentativa de evitar que aconteça o mesmo com outras pessoas.

Eu tenho essa visão crítica porque eu fiz uma pesquisa de mestrado que estuda a cultura do branqueamento, entrei numa seleção de doutorado para pesquisar e isso me atinge muito mais grave porque eu tenho conhecimento disso
Gilvaneide Santos
Professora

Legislação e identidade

Os documentos devem apresentar foto com rosto neutro, em fundo branco, com face na vertical e mostrando os ombros. "Imagem com rosto neutro, sem expressar riso ou algo do tipo", acrescenta Antunes Filho, membro da Comissão de Trânsito,Tráfego e Mobilidade Urbana da OAB Ceará.

Contudo, o advogado pondera as limitações para a construção da imagem, de acordo com pontos importantes para a cidadania. "O núcleo dessa lei está na questão da identidade social, a pessoa se apresentar nos documentos públicos como deseja, na identidade racial", exemplifica.

Quanto à postura da funcionária do caso, Antunes destaca a necessidade de analisar a conduta. "Deve registrar um boletim de ocorrência e verificar se acha que sofreu injúria racial, algo individualizado, ou prática de racismo, quando atinge toda uma coletividade", indica como possibilidade.