Se todo dia é dia de acender o alerta para o chamado à inclusão, quanto mais naquele em que é celebrado o Dia Nacional da Pessoa Surda. Neste domingo (26), instante no qual a efeméride ganha destaque, ressoam com urgência inúmeros contextos, promotores da necessidade de um maior conhecimento e reflexão sobre o assunto.
As dificuldades com as quais lidei para a realização desta matéria expõem uma lamentável chaga: ainda falta muito para que a acessibilidade seja não apenas palavra de ordem, mas sobretudo atitude indispensável no cotidiano. Prova disso é o fato de que nem todas as pessoas ainda podem ler estas linhas, compreendê-las de modo pleno. É preciso uma mediação qualificada, capaz de atender à diversidade da raça humana e, assim, estimular que novos fazeres venham à tona. Novos modos de presentificar o mundo.
Criadora de conteúdo digital e ativista da comunidade surda, Orleanda Lemos compreende bem esse panorama. “Essa data é pra estar no calendário assim como o Natal”, sentencia. Mãe de três crianças – Nicole, de oito anos; Heitor, de seis, e Pietro, de 1 ano e oito meses – desde 2016 ela realiza uma série de vídeos com o objetivo de mostrar que, para além da condição de surdez, os pequenos podem ter uma vida comum, sem abrir mão dos prazeres.
A predisposição para se aprofundar na temática é decorrente da circunstância da primogênita. Nicole Lemos é surda, característica que não a impede de possuir uma rotina natural. Ela vai à escola, faz as atividades passadas em sala, tem aulas de balé, joga em aparelhos eletrônicos, grava vídeos para as redes sociais, entre outros afazeres. “Não há nada que Nicole não faça, e eu sempre a incentivo a descobrir coisas novas. Ela ama essas experiências e aventuras. Além de tudo isso, também é modelo fotográfica e desfila”, situa a mãe.
Os desafios fazem parte da trajetória da menina desde o nascimento, conforme demarca Orleanda. Quando Nicole ainda era bebê, a família detectou que ela não se atentava aos ruídos, batidas de porta e ao chamado dos pais. Após uma bateria de exames, foi possível constatar a condição da pequena, não sem antes um esmerado esforço para que tudo pudesse se converter em saberes e vivacidade.
Por isso mesmo, a cada mês de setembro, desde que participou da passeata em Fortaleza relacionada à campanha Setembro Azul – criada de forma a dar visibilidade à comunidade surda brasileira – a mãe da garota trabalha para que os aspectos relacionados ao tema alcancem toda a sociedade. “Afinal, a comunidade surda existe e vive entre nós como cidadãos, com direitos, deveres e conquistas”.
Apoio à causa
Abraçada por essa mesma intenção, Orleanda Lemos também é criadora do projeto “Mãos que educam”. A iniciativa visa ensinar Libras (Língua Brasileira de Sinais) a todas as pessoas, independentemente de serem surdas. Basta que o desejo de inclusão nasça como realidade, rompendo as barreiras do silêncio e mostrando a todos que surdez não é doença.
“O projeto também tem como objetivo ajudar surdos e suas famílias na comunicação, orientando-os na descoberta da surdez ainda na infância e, assim, acompanhá-los com aulas básicas de Libras para auxiliar na comunicação surdo-ouvinte”, contextualiza. Com três anos de estrada, a ação já realizou palestras, entrevistas, aulas e um maior estreitamento com diversos grupos a partir do sonho de transpor as dificuldades impostas.
“Ainda estamos lutando muito por mais inclusão e acessibilidade. A realidade não é como queríamos. Há locais e situações que exibem apenas um status para mostrar à sociedade que ‘fazem o seu papel’. Porém, nessas ocasiões, sempre tem algum termo ou informação errada. É como se não tivessem o mínimo de respeito de pesquisar e conhecer o certo. Isso me chateia, e muito”, lamenta Orleanda.
Talvez a vontade de gravar vídeos educativos sobre o assunto e divulgá-lo nas redes sociais encontre um motivo exatamente devido a essa questão. Segundo observa, as pessoas gostam das produções porque recebem o conhecimento de Libras e/ou da comunidade surda de uma forma leve, precisa e com verdade, uma vez que quem repassa as informações é alguém que vive esse cotidiano: uma surda.
Luta-se para que a Língua Brasileira de Sinais seja reconhecida como a segunda língua oficial no Brasil; entretanto, a maior parte da população desconhece esse movimento. O que se observa é que o número de usuários de Libras no País ainda é muito pequeno, levando em consideração a quantidade de surdos que existem. Ações como a promovida pela criadora de conteúdo digital apontam para uma eficaz saída.
“Apesar dos desafios na vida da Nicole, eu sempre procuro que nada seja impossível, respeitando os limites dela, suas vontades e desejos. Por sua vez, o retorno com os cursos e ações do projeto ‘Mãos que educam’ vem quando as pessoas aprendem a respeitar e ter empatia pela comunidade surda. Isso me faz sentir alegria e esperança no coração, de um futuro mais inclusivo”.
Neste momento, de modo a dimensionar o quanto a filha vai longe, a mãe está realizando uma campanha virtual para que a criança participe de um festival nacional de balé. O evento acontece em dezembro deste ano e o total almejado da arrecadação é de R$800. Com todos colaborando, Nicole avança mais um passo na dinâmica de dizer “sim” ao talento e à vida.
Estrangeiros em casa
A professora e intérprete de Libras Maria Rozaly Araujo criou interesse pelo tema para conseguir ajudar seu irmão surdo. A família morava no interior do estado e, por não conseguir ouvir e se comunicar, ele não conseguia ter acesso ao básico: a educação.
"Para que ele tivesse um direito primordial que é de todos, a educação, tive que lutar durante cindo anos, pedir ajuda à justiça. Hoje ele tem aulas de Libras onde mora, no interior", conta.
A profissional se encontrou na sala de aula dando aula para uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e hoje é professora da disciplina obrigatória em cursos de licenciatura. Para ela, as conquistas para os surdos já são muitas, mas ainda está longe de ser o ideal.
Vejo que é difícil ser surdo em um país onde eles se sentem como estrangeiros, pois a minoria sabe língua de sinais e faltam políticas públicas... Enfim, continuamos na luta para dias melhores e mais conquistas para a comunidade surda.
Orgulho de ser surdo
Para o presidente da Associação dos Surdos Organizados de Fortaleza (Asof), Joaci Gomes Pires, uma das principais conquistas que ainda precisam ocorrer é a obrigatoriedade da disciplina de Libras nas escolas, permitindo que mais pessoas conheçam a língua e facilitando a interação entre surdos e ouvintes.
Apesar das barreiras diárias, o Dia Nacional da Pessoa Surda rememora conquistas já alcançadas e reforça o orgulho da comunidade.
"Porque é necessário mostrar a todos, nossas lutas e conquistas. É importante que a sociedade veja que temos orgulho de sermos surdos e termos uma língua própria, que é a Libras, e que precisa ser respeitada e divulgada para que todos aprendam e com isso favorecer a acessibilidade aos surdos", destaca.
A Asof realiza comemorações pelo período, além de eventos semanais cujo objetivo é promover a interação entre pessoas surdas e planejar eventos interativos, como jogos de futebol, festas de datas comemorativas (dia dos pais, dia das mães, festas juninas, etc.), entre outros. "O mais importante é o contato com todos", ressalta Joaci.